Por Zoltan Dujisin, especial para IPS/TerraViva
O Fórum Social Mundial se exibiu nas ruas de Belem em toda a sua diversidade: a mistura de sexos, idades, raças, e classes deu origem a uma verdadeira aldeia global. A música, percussão e o carimbó, a dança típica do Pará, marcaram o ritmo de uma das marchas mais molhadas de que há memória.
Desde o momento que sairam das Docas da cidade, todos os militantes defendem a própria causa, mas sem destoar do conjunto. Os organizadores vestem camisetas verdes e dão as mãos formando um cordão humano. Partidos à esquerda do PT brasileiro atacam o presidente Lula , uma das estrelas do Fórum, pela sua alegada insensibilidade social. “Viva o socialismo, viva o fórum, viva o Brasil!” gritam. Detrás, o que aparenta ser um dragão chinês desfila verticalmente: “Trabalho para um teatro de bonecos que se preocupa com a situação dos refugiados”, diz o homem que emerge do refugio de tecido. Fiel à fama de país latinoamericano mais tolerante com o movimento gay, não faltam bandeiras em arco-iris. Alguns cidadãos locais participam, muitos outros têm o compreensível olhar pasmado de quem nunca viu nada assim. A polícia mantém uma presença mínima e discreta, e a segurança não parece preocupar ninguém, o maior perigo está nos buracos de rua que os belenenses indicam aos mais incautos.
Os belenenses que não se deixaram surpreender pela marcha aproveitaram ao máximo as oportunidades oferecidas por tamanha multidão: Os postos de venda ambulante, às vezes acompanhando o próprio desfile, esvaziam os estoques de bebidas, frutos tropicais e comida rápida; os caixa nos supermercados não tem um momento de descanso ante as infindáveis filas; uma companhia de teatro local promove a sua peça de teatro, enquanto outros propõem mostrar o caminho da paz espiritual à base de cartas, tarô e bolas de cristal. Em papel reciclado.
As primeiras gotas de chuva obrigam a multidão, qual formação napoleônica, a formar três linhas. A primeira mostra-se indiferente, enquanto as outras duas encostam-se nas marquises procurando refugio debaixo dos prédios na avenida Presidente Vargas. As bandeiras vermelhas esvoaçam ao vento prenunciando a tempestade, e numa questão de minutos a chuva tropical amazônica precipita-se sobre os manifestantes que a recebem aos gritos, alguns de alegría.
Os índios da amazônia, de tronco nu, são dos primeiros a refugiar-se da chuva. Com 1200 índios de várias tribos participando do fórum, a presença de alguns na marcha não passa desapercibida. Envergando flechas e arcos, alguns não resistem à tentação de torna-los objectos exóticos e turísticos: “São de onde?” pergunta um nórdico enquanto evita o manancial de água que cai do céu.. Os indios trocam olhares de indiferença e respondem: “Moramos a 400km daqui.” Ato seguido, o nórdico morde os lábios e com um brilho nos olhos leva a cámara a poucos centímetros da cara dum índio. Só depois de tirada a foto pergunta: “Posso tirar um foto?”. O indio encolhe os ombros e responde que sim, conformado.
O medo – ou a paciência - dos índios dura pouco, e quando se torna óbvio que a chuva veio para ficar, os indígenas e militantes demonstram que são capazes de sacrificar-se pela própria causa. Lançando-se para o meio da tempestade, ao rítmo frenético dos percussionistas, que usam tudo desde tambores a baldes de tinta e placas de carro, os índios decidem também exibir os próprias ritmos e danças tribais, e quase que parecem com a incessante chuva. Os guarda-chuvas não resistem à fúria da natureza e pouco a pouco não resta um militante seco, com a chuva que ameaça causar uma epidemía de gripe entre os membros do Fórum.
Para infelicidade do feminismo, tanto os belenenses como os participantes demostram apreciar as camisetas molhadas das jovens militantes, tanto brasileiras como suecas com queimadura de pele, lançando assovios. Mas a chuva pára, a roupa seca, e a concentração volta ao normal.
As classes mais altas também marcam presença: sentados nos jipes e com cara enfadonha, aguardam que a infinita marcha passe para atravessar as principais artérias da cidade, todas elas bloqueadas sob ordem policial. Uma vez perdida a paciência, também protestam, proporcionando à força de ordem um buzinasso monumental que consegue cortar momentaneamente a marcha para deixar passar o trânsito furioso.
À medida que passa o tempo aumenta o consumo de alcool. Aparecem militantes dançando no teto dos ônibus, outro ónibus funciona como discoteca móvel onde os participantes entram e saem, bebendo uma cerveja e dançando ao som da música pop. Mas enquanto cresce o consumo de álcool, cresce também o protagonismo da polícia.
Numa transversal da Avenida Governador Barata, um jovem é detido levado para um carro da polícia, para indignação da multidão: “Solta! Solta!” gritam dezenas de jovens que rodeiam o veículo impedindo os policiais, encostados ao carro, de levarem o suspeito. Dentro do carro o jovem está furioso, gesticula, mas sente que a multidão não vai deixa-lo lá. “Ele só mijou numa árvore!” diz uma mulher de meia idade que tenta dissuadir os impávidos policiais. “Eu não sou bandido nenhum!” grita o jovem pela janela afora, mas pouco depois passou os documentos ao polícial no assento da frente. Alguns militantes apelam à calma mas o jovem, furioso responde “falta de calma não é crime nenhum,” e virando-se a um polícial acusa-o: “você não é mais cidadão que eu!”. Enquanto o polícial anota os dados pessoais, o jovem, ainda no interior da viatura, acende um cigarro e a multidão procura a simpatia das forças da ordem: “você aí fardado, também é explorado!”
A multidão obtém o desejado: O jovem sai do carro aplaudido como um herói e aos gritos do “povo unido jamais será vencido!” aproveitando para virar-se e apontar o dedo e ameaçar o policial que o deixou sair, com a outra mão apertando um pedaço de papel: “Não é uma multa,” explica um agente da ordem. “Ele foi parado porque desacatou um polícial e foi necessário pedir reforços,” diz o agente. Uma testemunha local esclarece entre muitos risos: “Ele tava bebado, e foi mijar para cima do carro da polícia, e ainda por cima não queria ir embora!”. Outra testemunha ouve a conversa e sentençia: “Onde há banheiro? Não há banheiro!” Nada como a sabeduria popular para tirar dúvidas.
Começa a escurecer e as luzes verdes e espectrais da capital amazônica iluminam as imensas árvores e prédios: “A amazônia não é mercadoria!” lembram uns ambientalistas. Mas o ambiente já está mais relaxado, os slogans pronunciam-se com menos força e a percussão torna-se irregular, apesar do apoio dos locais: Há quem continue a seguir o desfile desde a varanda pendurando uma enorme bandeira do Che Guevara, enquanto desde o jardim do Colégio da Nossa Senhora da Nazaré uma Banda dos Maristas toca “em homenagem ao fórum,” como explica o segurança à porta.
A marcha não podia acabar sem um pequeno incidente que era de esperar: todo o dia milhares de pessoas desfilaram à frente do McDonalds da Avenida Governador Barata, e nas horas tardias há quem não duvide em mostrar o seu pouco apreço pela cadeia de restaurantes multinacional. Um jovem aproxima-se do establecimento e começa a lamber o vidro chocando primeiro, e divertindo depois as adolescentes vestidas com roupas de marca e com seus celulares de último modelo que jantam no interior. Um grupo consegue infiltrar-se e dança em círculo à volta das mesas, algo que até os próprios funcinários, parados num canto, acham engraçado.
Mas é diante da entrada principal que começa a concentrar-se a polícia de choque com cães, que segundo um oficial esteve ali “todo o dia sem que se tenham verificado incidentes.” Ao fim da tarde os animos começam a aquecer e alguns manifestantes jogam latas de cerveja contra o establecimento, enquanto gritam palavras de ordem contra a polícia. Os mais talentosos gozam da polícia de forma imaginativa, dançando em tom de burla a poucos centímetros dos agentes e tocando tambores e triângulos. Os cães ladram irritados e um helicóptero paira no ar. A polícia parece querer avançar, alguns oficiais pousam a mão sobre o spray de pimenta, mas isso não impede que dezenas de militantes se postem frente ao cordão policial para tirar a tal foto inesquecível. Entretanto as latas, e desta vez também as garrafas de vidro continuam a voar em direção ao McDonalds. Em vez de intervir, a polícia decide recuar, e revela certa inteligência: O McDonalds rapidamente perde o interesse dos manifestantes, levando só com mais uma lata à qual a polícia não reage. Mais uma vez um local diverte-se com a inusual situação e comenta a um polícia: “Come quem quer não é? É democracia! Agora quem quer comer não pode entrar!” diz com boa disposição. Os manifestantes têm a sua resposta: “É com o nosso dinheiro que protegem essa merda!”.
A marcha continua, tal como a festa, a boa disposição, a dança e a alegria. Desconhecidos apresentam-se e trocam impressões, e os belenenses, curiosos, perguntam aos estrangeiros de onde são. Oficialmente pode ter acabado, mas a festa lançada pela marcha com certeza durou até às tantas.
Assista o vídeo:
(Envolverde/Terraviva/IPS)
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