Por Francisco Carlos Teixeira*
Uma das tendas que mais chama atenção neste FSM em Belém, inclusive pela quantidade de jovens estudantes, é do CEDIAL/Centro de Divulgação do Islam na América Latina, instalada no campus da UFPA.
O Islam na América Latina
Lá estava Moumtezs Hachen El-Orra, 48 anos, libanês de nascimento, mas radicado no Brasil depois de vários anos. Num português fluente, enfático e, mesmo, cativante El-Orra atendida os diversos visitantes do CEDIAL com muita atenção. Sunita (ou seja, pertencente ao ramo dominante do Islam, em contraste com os xiítas), durante nossa conversa o diretor do CEDIAL nos falou sobre as dificuldades, e esperanças, dos cerca de um milhão de muçulmanos que vivem na América latina. Ao contrário do que se poderia supor a forte campanha anti-muçulmana que varreu o mundo depois de 11/09/2001 não prejudicou a predicação e proselitismo muçulmano no continente. Um maior número de pessoas, conforme El-Orra, procurou entender, conhecer e se aproximar da religião islâmica, recusando os estereótipos impostos. Neste sentido houve, depois de 2001, um crescimento do interesse por esta religião em todo o continente, com aumento da construção de mesquitas e da afluência.
O Islam
Mas, o que é o Islam (El-Orra insiste na forma “Islam”, em lugar de “Islã”)? El-Orra nos fala de uma religião inspirada e revelada, ou seja, diretamente trazida aos homens por Deus ( “Allah” ) através de “seus” profetas. Isso mesmo! Profetas no plural. Mohammed. Isso mesmo, Mohammed! A forma “Maomé” é um galicismo recusado, sem qualquer vigência em português ou árabe, portanto sem sentido seu uso continuado. Na verdade, Mohammed não foi o único, embora tenha sido o maior de todos os profetas na Revelação do Islam, incluindo aí a revelação do livro sagrado (o Corão ou Alcorão). El-Orra nos ensina que para ser muçulmano basta aceitar a forma básica de reconhecimento da religião”: “Deus é Único e Mohammed é seu Profeta!”. Claro que existem outras obrigações do fiel. Para as mulheres, por pudor e respeito, o uso do lenço (nada de burkha ou outras formas de velação pesadas) apenas o chador. Para todos os fiéis é obrigatório o jejum no mês santo, do Ramadam, a esmola dos pobres ou “zakat”, a peregrinação à Meca (ou “Haj”) e, claro, a regra das orações diárias voltadas para Meca.
El-Orra entende que muitas vezes os preceitos não são devidamente cumpridos pelos fiéis. No entanto, ao aceitar a Revelação de Deus (na fórmula acima ) o convertido é, e permanece, “muslim”, submetido à Deus. Talvez, não um bom fiel (como também existiriam católicos ou evangélicos relapsos), mas seria, todavia um muçulmano.
O Islam, o Estado e seus valores
Para El-Orra grande parte do sucesso do Islam nas nossas Américas advém de um sentimento cada vez mais presente de crise da família, em especial entre as mulheres. Neste ponto mostra-se claramente rigoroso, sem concessões: a unidade da família, o papel dirigente dos pais na criação dos filhos, a preservação da virgindade das moças, a recusa aos vícios mais comuns entre jovens... Todos estes são itens de clara exigência para um fiel e que colocam em risco sua salvação em caso de transgressão.
Um outro ponto polêmico é a certeza de que não é possível a salvação da alma com descompromisso com as condições materiais do próprio fiel. Assim, um poder político que permita o deboche, os vícios e o relaxamento dos costumes – muito especialmente em relação à família – não poderia, nunca, ser um regime considerado justo pelos muçulmanos.
A idéia, de origem iluminista, datando no Ocidente do século XVIII, de separação entre a esfera da vida pública – onde vigem critérios laicos, de livre escolha e de não intervenção na educação dos filhos ou na gestão doméstica – do âmbito esfera privada – a casa, a família, a religião – não é um dado aceitável para o Islam.
Eis aí as bases de uma forte fratura civilizacional. No Ocidente a emergência da diferenciação entre público e privado foi, exatamente, uma resposta às terríveis guerras de religião que sacudiram a Europa entre 1517 (Proclamação das Teses de Lutero) até o século XVIII. A resposta de intelectuais e políticos (muito especialmente depois dos Tratados de Westphalen, de 1648) foi deixar para esfera das escolhas privadas a questão religiosa.
O Islam, ainda conforme El-Orra, em face dos graves vícios e danos da vida moderna ( mais uma vez a ênfase recai na família ) duvida da resposta gerada no Ocidente e na sua capacidade de forjar pessoas íntegras e felizes. Muito especialmente o divórcio e o adultério são vistos como fontes da infelicidade. El-Orra nos pergunta: os filhos de pais separados são realmente felizes? Sem dúvida é uma questão de difícil resposta.
Islam e Tolerância
Neste sentido o Islam é político e a política (num país convertido) é islâmica. Esta seria a única possibilidade de evitar a perda das pessoas frente a um Estado moralmente relaxado. O Estado laico seria visto como um Estado sem Deus, onde o vício poderia instalar-se livremente. Assim, para o Islam não basta uma alma limpa, mas busca-se junto o corpo limpo! Para o verdadeiro “muslim” deve-se executar as leis Deus na terra, este seria o papel do verdadeiro “muslim”, e não a conformação com as leis dos homens!
O livro, o Alcorão, é a fonte de toda a sabedoria, na verdade “o livro de todas as épocas”, onde os avanços da ciência, da moral, da ética estão presentes e servem de fonte permanente para os fiéis. As “charias” e a Suna – a tradição recolhida da época do Profeta – complementam e ampliam os ensinamentos transmitidos por Deus.
Por fim, El-Orra insiste na compreensão do espírito da sua explanação, e mesmo chega a temer que não consigamos trazer para o público, a verdadeira face do Islam. Deixa claro que considera sua religião a única correta, fonte do conhecimento e da sabedoria. Contudo, com ênfase, insiste no respeita às demais religiões. Fala-nos que a certeza de estar certo, de estar al lado do Único, não permitiria a ofensa ou humilhação dos demais. Recordando uma passagem do Alcorão, quando o Profeta adverte seus seguidores que ameaçavam os defensores derrotados de Meca, contra a impiedade e a arrogância. Ao não convertido não cabe, por parte do “muslim”, ofensas nem por palavras, nem atos, nem pela espada!
* Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
(Envolverde/Agência Carta Maior)
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