Por Bettina Barros
As pastas brancas etiquetadas por ordem alfabética já estavam postas sobre as mesas quando os mais de 300 agricultores chegaram ao principal salão de eventos de Lucas do Rio Verde, município cravado no corredor agrícola que rasga o Mato Grosso de norte a sul. Um a um, eles recebem a pasta com uma foto de satélite colorida e uma folha explicativa. Ali está o raio-x de suas propriedades: área, divisas, rios, nascentes, plantações e um borrão vermelho onde deveriam estar as matas protegidas por lei.
A entrega das imagens georreferenciadas de 100% das propriedades rurais de Lucas do Rio Verde é um marco histórico para o município, que como centenas de outros ignorou a legislação ambiental mas agora quer se transformar numa referência para o resto do país - com uma mensagem clara para o mundo.
"Se não fizermos isso, não vendemos soja lá fora", diz Luiz Roberto da Costa Alves, dono de dois lotes de terra de pouco mais de 400 hectares, enquanto olha a foto que mapeia por completo sua propriedade. Alves está em déficit de verde, mas parece disposto a resolver o problema.
Esse tipo de atitude é um passo gigantesco e só foi possível graças a um acordo amarrado há um ano entre prefeitura, conselho municipal, Ministério Público, sindicato rural, representantes ambientais e da agroindústria. A aliança inédita visa tornar Lucas o primeiro município do país a ter todas as propriedades regularizadas sob o Código Florestal.
Foram quase R$ 500 milhões investidos nos últimos 12 meses para a estruturação e a implementação do projeto "Lucas do Rio Verde Legal", que culminou com a cerimônia de entrega, na última sexta-feira, das fotos do satélite francês Spot 5, de média a alta definição. Os financiadores dão credibilidade à iniciativa: Fiabril (biocombustíveis), Syngenta e a Sadia, todos diretamente associados à soja e ao milho. Na coordenação do projeto está a The Nature Conservancy (TNC), uma respeitada organização não-governamental que atua para a preservação do ambiente.
O resultado é que Lucas tem hoje em mãos seu diagnóstico ambiental, condição básica para arrumar a casa. Os trabalhos nesta primeira fase do programa rastrearam os 365 mil hectares do município e contabilizaram a existência de 690 nascentes, dois mil quilômetros de rios, 262 açudes ou reservatórios e 360 mil hectares de área agrícola, entre outros dados. "Essa lição de casa ninguém mais fez", diz a secretária municipal de Meio Ambiente e Agricultura, Luciane Copetti.
Responsável por 1% da produção nacional de soja e 10% do milho, Lucas tem um passivo total de reserva legal - o percentual mínimo de florestas em uma propriedade exigido por lei - de quase 30 mil hectares. O déficit das áreas de proteção permanente, como a mata da beira de rios, é de cerca de 2,7 mil hectares.
Esse "buraco" verde era sabido. O que não se conhecia era o seu tamanho de fato e a responsabilidade de cada um nesse processo.
Lucas surgiu na esteira do programa de assentamentos criado pelo governo federal para povoar o "sertão" brasileiro. Seus habitantes são de origem gaúcha, paranaense e catarinense, encorajados à época a esticar a fronteira agrícola. A terra era de graça. Cada um que fincou o pé ali recebeu um lote de 200 hectares. A ordem era clara: plantem.
Natural, portanto, que exista hoje déficit de verde. Mas Lucas não é um caso isolado. O município está no principal corredor de escoamento do Mato Grosso, a BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, no Pará. Subindo da capital em direção norte, a paisagem é monotonamente marcada nesta época do ano pelo milho safrinha (que faz o revezamento com a soja). Não há uma sombra para onde correr. Nova Mutum, Lucas do Rio Verde, Sorriso, Sinop estão nesse eixo e respondem pela maior produção de soja do país.
"Há problemas, mas temos de parar de culpar os outros e agir. Se alguém pode preservar é o produtor. Precisamos convencê-lo e não agir com truculência", afirma Marino Franz, prefeito da cidade. "Fiz uma viagem à Europa e vi a preocupação com a compra de produtos da Amazônia".
Para as empresas patrocinadoras, é um exemplo. "É uma boa semente e esperamos que isso se multiplique. Nem a Sadia nem a Prefeitura conseguiriam fazer isso sozinhas", diz Nadir Cervelin, gerente de projeto em Lucas, onde a Sadia investe R$ 800 milhões na construção de seu maior complexo agroindustrial no país.
Convencê-los ao georreferenciamento foi a primeira tarefa. Houve adesão de 100% dos 350 produtores. Agora, equipes técnicas da Prefeitura percorrerão as fazendas para checar, in loco, os ajustes a serem feitos. A aliança contratou a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) para estudar a melhor maneira de recuperar as áreas de proteção permanente.
Ninguém terá de arrancar soja para recompor a reserva legal, que no cerrado significa 35% de vegetação nativa protegida. Segundo Henrique Santos, coordenador de conservação em terras privadas da TNC, a idéia é que os passivos ambientais de todas as propriedades sejam compensados de forma coletiva, formando corredores de biodiversidade. A ONG já tem em vista algumas áreas grandes de florestas preservadas - ainda não abre para evitar especulação imobiliária.
Outra estratégia é eximir o produtor de pagar a multa pelo descumprimento ambiental. A Prefeitura trabalha com o Ministério Público para que o sojicultor parta diretamente para um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), pelo qual se compromete a resolver a situação prontamente. "Tenho que puxar o produtor pro meu lado. Se tiver que pagar multa, ele não vem", diz a secretária Luciane Copetti.
Por ora, tudo parece caminhar bem. "Todo dia eu recebo uns 10 produtores que me procuram para pedir explicações sobre regularização", diz Giovanni Mallmann, da equipe local da TNC. Se tudo der certo, daqui a 20 ou 30 anos o município estará devidamente quitado com o ambiente.
A jornalista viajou a convite da TNC
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