quinta-feira, 12 de junho de 2008

Valor - Engolindo à força a agenda ruralista


Opinião

Quem apostou no declínio da bancada ruralista a partir da legislatura 2003/2007, quando ela deixou para trás, enroscados nas urnas, 28 deputados, estava absolutamente enganado. O refluxo dos movimentos populares que são seus antípodas - em especial o MST -, num momento em que o agronegócio ganhou um novo ímpeto, impulsionado pelo aumento do consumo interno de biocombustível, da demanda internacional de commodities e da renda das famílias mais pobres, deram novo gás ao grupo de pressão que desde a legislatura 1999/2003 atua no Congresso.

O grupo ruralista é grande, alia setores tradicionais da agricultura e pecuária ao agronegócio e à agroindústria, e hoje pressiona organizada e institucionalmente as últimas fronteiras agrícolas do país. Os parlamentares empunham um discurso de defesa da propriedade privada quase primitivo - qualquer medida ambiental ou de proteção de minorias é atentado à propriedade, inclusive quando diz respeito a terras da União sob posse irregular -, e têm deixado sua marca em todas as comissões que digam respeito, direta ou indiretamente, à produção agropecuária. A atuação parlamentar, no entanto, sofisticou-se: o grupo está longe de se mobilizar apenas nas questões financeiras imediatas do setor (como é o caso da renegociação das dívidas dos produtores agrícolas sempre em pauta, em qualquer governo). Seus deputados e senadores têm aberto à foice grandes vácuos na legislação ambiental que favorecem a grilagem e o desmatamento da Amazônia, e mantido constantes quedas-de-braço com movimentos sociais pela reforma agrária, de quilombolas ou por direitos indígenas, onde quase sempre ganham.

Desde 1999, os ruralistas detêm a presidência das Comissões de Agricultura da Câmara e do Senado e um grande poder de influência na definição do ministro da Agricultura. Não foi diferente no governo Lula: o ex-ministro Roberto Rodrigues era ligado ao setor e o atual, Reinholds Stephanes (PMDB-PR), embora não oficialmente vinculado ao grupo quando era parlamentar, tem com ele uma grande afinidade. O ministro alinhou-se às pressões dos ruralistas e fez oposição militante à decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN), que proibiu a concessão de crédito rural a proprietários rurais que respondem por crimes ambientais, mesmo sendo essa uma orientação de governo. Foi ativo na negociação de uma renegociação rural, a quarta e mais generosa desde 95. Comprou uma briga pública com Marina Silva quando ela era ministra do Meio Ambiente, embora os dois fossem do mesmo governo e, teoricamente, estivessem sob as mesmas diretrizes. Stephanes dá continuidade a um estranho hábito na democracia recente do país: assume como função do cargo ser parte do grupo de pressão de setores agrícolas contra o governo que integra. Esse comportamento pode ser atribuído ao fato de que, em última instância, a do ministro nomeação conta sempre com o aval da bancada ruralista.

Bancada detonou política ambiental


Se Stephanes tem sido mais efetivo como mediador de interesses da bancada ruralista e de seu lobby para estender as fronteiras agrícolas da Amazônia Legal do que seu antecessor, é porque sua origem parlamentar o favorece. A bancada ruralista tem, segundo o Departamento Intersindical de Ação Parlamentar (Diap), 120 parlamentares (116 segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc) e domina as comissões de Agricultura da Câmara e do Senado e as de meio ambiente das duas casas. Segundo levantamento do site "Congresso em Foco", a Comissão Temporária de Risco Ambiental do Senado tem 7 dos seus 9 membros tirados da bancada; e, na subcomissão temporária para acompanhar a crise ambiental da Amazônia, também do Senado, os ruralistas são a metade. Na Câmara, 16 dos 35 integrantes da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável são ruralistas. Eles têm massa crítica para barrar não apenas projetos que contrariem seus interesses, mas qualquer outro. São 25% da base de apoio parlamentar do governo e usam disso para negociar. O ministro da Agricultura acaba funcionando como um braço do grupo de pressão no Executivo, complementar à ação parlamentar.

A bancada foi o sumidouro de decisões mais progressistas do governo em relação à titulação da terra amazônica, a medidas de contenção do desmatamento e aos direitos de índios e quilombolas. O que passa pela peneira da luta interna do governo é barrado no Legislativo. Nesse segundo mandato de Lula, os parlamentares ligados ao setor rural fizeram uma ação de terra arrasada nas políticas de proteção ambiental duramente conquistadas pela até bem pouco ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. No dia em que ela se demitiu, a bancada fez aprovar no plenário da Câmara uma medida provisória, obtida por pressão junto ao Poder Executivo, que aumenta de 500 para 1.500 hectares o limite da área na Amazônia que pode ser concedida pela União para uso rural sem licitação. Um projeto de decreto legislativo de autoria da senadora Kátia Abreu (DEM-TO), que estava em votação ontem na Comissão de Constituição e Justiça no Senado, tem o poder de demolir toda a lógica da política de meio ambiente do governo: a proposta acaba com o embargo a propriedades desmatadas, restitui o crédito oficial a desmatadores e elimina a necessidade de recadastramento das propriedades agrícolas da Amazônia Legal (chamada pelo Incra para detectar titulação falsa ou posse irregular). Outro projeto que ameaça a Amazônia é o do deputado Valdir Colatto (PMDB-SBC), que, em última instância, reduz de 80% para 50% a área de preservação na região.

Embora se espraiem por todos os partidos, os ruralistas se concentram em partidos conservadores e/ou regionalizados, isto é, legendas onde as lideranças regionais usufruem de autonomia em relação ao partido. Segundo o Inesc, o PMDB tem-nos em maior número - e, como é o maior partido da base, torna-se o centro das negociações pontuais com o governo devido ao poder de pressão da bancada ruralista dentro dele, e da bancada ruralista junto ao governo. Em seguida vem o DEM e, depois dele, PP e PSDB, quase empatados. Dada a diversidade partidária, supõe-se que os ruralistas têm aproveitado a frouxidão ideológica dos partidos não apenas para se eleger, mas para impor uma agenda que é conservadora aos seus próprios partidos, ao governo e ao Congresso.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião.
Crédito da imagem: Jornal o Valor Econômico

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