quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

OESP - Pecuária e desmatamento da Amazônia

Por André Meloni Nassar

Os dados com as estimativas da área desmatada no bioma amazônico divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), referentes aos meses de agosto a dezembro do ano passado, colocaram a pecuária na berlinda. O setor foi alçado à posição de grande responsável pela retomada do crescimento do desmatamento, que, como confirmaria qualquer brasileiro, é um problema que não podemos mais deixar de enfrentar. Nesse caso, a pecuária tornou-se a vilã.

No entanto, quando se analisa o comportamento da área de pasto nas regiões que não são fronteira agrícola, ou seja, fora do bioma amazônico, o título não cabe. Os dados preliminares do Censo Agropecuário do IBGE, divulgados no final do ano passado, comprovam que a pecuária liberou enormes contingentes de terra que foram convertidos para produção agrícola. Contribuiu, portanto, para evitar novos desmatamentos, levando a um aumento da produtividade da terra. Nesse caso, cabe à pecuária o título de mocinha.

O Censo do IBGE, tal qual o levantamento do Inpe (embora os dados não sejam exatamente comparáveis), também mostra que a pecuária se expande na fronteira agrícola. Quando se faz um balanço entre o crescimento da área utilizada com pastagens na fronteira agrícola e nas regiões de não fronteira, observa-se que a pecuária liberou muito mais área (velha) do que abriu (nova). Em outras palavras, a conversão de terras de pasto pouco produtivo em produção de grãos, ou mesmo em pastos manejados, reduz o impulso de desmatar. Dessa perspectiva, no longo prazo, o lado mocinho da pecuária é mais forte que o lado vilão.

Assumindo que os dados do Censo não passarão por uma revisão significativa, em dez anos, entre os Censos de 1996 e 2006, na região de não fronteira agrícola - aqui definida como o território onde predominam os biomas da mata atlântica e dos cerrados (Estados das Regiões Sul e Sudeste, da Bahia, de Mato Grosso do Sul, de Goiás, do Tocantins e apenas a área de Mato Grosso que está fora do bioma amazônico) -, a área de pasto foi reduzida em 18,6 milhões de hectares (ou 186 mil km²). A área utilizada com lavouras anuais e permanentes, não por acaso, cresceu cerca de 17,6 milhões de hectares, mostrando que o crescimento da agricultura se deu em área de pecuária. Somando o espaço utilizado com pasto e lavouras, o Censo indica que houve queda de 1 milhão de hectares entre 1996 e 2006.

Já no bioma amazônico, aqui considerada a região de fronteira agrícola, que engloba uma boa parte de Mato Grosso e todos os Estados da Região Norte, com exceção do Tocantins, a área utilizada com pastagens aumentou 11,1 milhões de hectares. A expansão da área com lavouras foi de 7,6 milhões de hectares, resultando numa expansão total de 18,7 milhões de hectares. Esses números mostram que, embora a pecuária tenha, comprovadamente, avançado na fronteira agrícola, sua contribuição, liberando terra para produção agrícola, foi consideravelmente mais importante nas áreas de não fronteira.

Esta constatação enseja diversas implicações, sobretudo porque a pecuária é o setor que mais ocupa terra no Brasil. De acordo com os dados do Censo, há 172,3 milhões de hectares utilizados com pasto e 76,7 milhões utilizados com lavouras. A mais importante está em que, do ponto de vista do uso racional da terra e da redução da necessidade de incorporação de novas terras, a conversão de pasto em lavoura leva a um aumento da produção agrícola sem queda na produção da bovinocultura. Os 18 milhões de hectares na área de não fronteira representaram uma redução de 14% na área de pasto em relação a 1996. O rebanho bovino, por sua vez, caiu apenas 1,4% no mesmo período (o Censo de 2006 indica uma diminuição no rebanho de 1,6 milhão de cabeças). Isso significa que a pecuária apresentou, no mínimo, um ganho de 1,4% ao ano de produtividade. Ganho mínimo, porque sabemos que ainda existem relevantes contingentes de pasto degradado nesta região. Estimativas mostram que 20% dos pastos dos Estados de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás podem estar degradados, ou seja, não são mais utilizados como fonte de alimento para o gado bovino. Retirando cerca de 25 milhões de hectares de pastos degradados da área total de pastagem nesses Estados, o ganho de produtividade da pecuária passa a ser de 4,5% ao ano, certamente bem maior do que a maioria das lavouras.

Ganhos de produtividade, no entanto, não são prerrogativas das áreas de não fronteira. O Censo mostra que a pecuária da Amazônia também se tornou mais produtiva nos últimos dez anos, tendo apresentado taxa de crescimento da produtividade maior do que a observada nos Estados do Centro-Sul. Isso comprova que, nessa região, a pecuária é uma atividade viável e rentável. Portanto é uma forte concorrente na competição pelo uso da terra.

O desmatamento - e, mais grave, o aumento do ritmo do desmatamento - tem de ser combatido por todos os meios possíveis e eficazes, incluindo a ação fiscalizatória e repressora do Estado. Mas a melhor forma de fazê-lo é criar, na Amazônia, mecanismos já bem-sucedidos nas áreas de cerrado e mata atlântica: estimular ganhos ainda maiores de produtividade na pecuária e utilizar as terras já desmatadas para produção agrícola. Não descartaria também a criação de incentivos para estimular produtores a regularizar suas fazendas, mesmo que isto leve, num primeiro momento, a uma flexibilização das exigências de reserva legal.

No entanto, para que tudo isso seja possível, temos dois desafios fundamentais. O primeiro é reconhecer que a região amazônica precisa gerar riqueza e renda para sua população e a pecuária é parte da solução para vencer este desafio. O segundo é criar valor para a floresta em pé, balanceando a competição por terra entre agricultura e conservação.

André Meloni Nassar é diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).

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