quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

OESP - O santuário profanado

Em fins de janeiro, quando saíram as mais recentes estatísticas sobre o desmatamento da Amazônia, mostrando que a derrubada voltara a aumentar nos últimos cinco meses de 2007, revertendo a tendência dos três anos anteriores, a primeira reação do presidente Lula que chegou a conhecimento público foi a de convocar uma reunião ministerial, em caráter de urgência, e de anunciar medidas duras contra os presumíveis responsáveis pelo estrago. Não se sabe o que aconteceu em seguida na intimidade palaciana, mas o fato é que, passado um punhado de dias - e de novo parecendo justificar a sua auto-avaliação como a 'metamorfose ambulante' celebrizada pelo compositor Raul Seixas -, Lula deu de soltar o verbo para cima da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em plena queda-de-braço com o seu colega da Agricultura, Reinhold Stephanes, sobre a validade dos novos dados e as causas do surto que neles se exprimia.

Com efeito, nunca antes na história do seu governo, o presidente desautorizara a sua colaboradora - ou qualquer outro deles - com palavras tão acintosas. Primeiro, ele a acusou de fazer um alarde comparável ao do portador de um 'tumorzinho' que não espera a biópsia para se declarar canceroso. Horas depois, rebaixou o 'tumorzinho' à 'coceira' que, pelo desconforto que provoca, leva o paciente a se imaginar vítima de grave doença. Não obstante, como é do seu feitio, para agradar ao outro lado, Lula não deixou de considerar preocupante o aumento do desmate, advertindo que o governo não será tolerante com 'essa gente' que derruba árvores ilegalmente. Até o mais distraído dos brasileiros, porém, terá percebido que o que Lula pensa verdadeiramente do problema estava no carão passado à ministra - e na sua solidariedade com o 'parceiro' Blairo Maggi, o rei da soja que governa Mato Grosso, outro inimigo de Marina.

Tanto assim que, no encontro de terça-feira com o presidente francês Nicolas Sarkozy, na fronteira do Brasil com a Guiana, Lula fez questão de assinalar o seu distanciamento 'daqueles que defendem a Amazônia como um santuário da humanidade'. Afinal, argumentou, 'do lado brasileiro moram 25 milhões de pessoas que querem trabalho, comer, ter carro e acesso aos bens produzidos'. A seguir, para francês ver, tornou a recitar o lugar-comum sobre o desafio de desenvolver a região 'levando em conta a questão ambiental'. Ora, não é possível que o presidente não saiba que o retrato da Amazônia como um santuário é uma caricatura das preocupações dos ambientalistas e de todos quantos se alarmam, a justo título, com os efeitos do desflorestamento para a elevação dos níveis de gás carbônico na atmosfera, comprovadamente associada ao aquecimento global. A Amazônia, toda ela reserva ecológica intocável, é, hoje em dia, uma fantasia restrita às franjas radicais dos movimentos verdes - como tal, uma irrelevância.

Os estudiosos do ambiente que têm a cabeça no lugar e conhecimento da realidade amazônica já produziram pencas de estudos sobre a sua viável ocupação econômica diferenciada. Se fosse o caso, o presidente poderia aprender com cientistas brasileiros do quilate do físico José Goldemberg, por exemplo, quanto é simplória, além de irreal, a dicotomia entre a Amazônia santuário e a Amazônia aberta à exploração desbragada. Mas não é o caso. Para bom entendedor, a começar do que outrora se chamavam 'classes produtoras', o que Lula efetivamente disse anteontem em Saint-Georges do Oiapoque é que ele não está nem aí para os riscos ecológicos da colonização cega da Amazônia.

Para que não paire dúvida sobre isso, no mesmo dia em que Lula profanava o santuário amazônico, seu ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, prometia aos produtores rurais, apontados como os grandes responsáveis pelo desmatamento, que não vai abandoná-los. 'Ele concorda com as nossas posições e disse que o decreto tem de ser revisto', disse o vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, referindo-se ao Decreto 6.321 publicado no final de 2007, que, segundo ele, 'na prática proíbe novos desmatamentos na Amazônia Legal'.

Como sempre acontece nesse governo, em que um ministro não sabe o que o outro faz - como ele próprio já disse -, obrigado a decidir a luta entre dois ministros, Lula deu a vitória a Stephanes. Por pontos, por enquanto.

Nenhum comentário: