Na manhã de uma quarta-feira de junho, no coração da Amazônia, o madeireiro Rusever Oliveira, 43 anos, comanda o ritmo frenético da empilhadeira que separa dezenas de toras de espécies nobres da região. No pátio de sua serraria, em Castelo de Sonhos, distrito de Altamira (PA) de 10 mil habitantes cortado pela BR-163, os troncos derrubados ilegalmente secam sob o sol abrasador e um grosso poeirão. As encomendas vêm de toda parte. Um caminhoneiro de Maringá (PR) reclama do atraso no pedido e um fazendeiro consulta o preço de algumas tábuas. Naquele dia, o metro cúbico do ipê-champanhe era comprado a R$ 150 e vendido a R$ 350 por Rusever.
A 23 quilômetros dali, longe dos negócios madeireiros, o ex-garimpeiro gaúcho Telmo Davies, 57 anos, acabara de estender no varal de casa retalhos de carne bovina cedidos por um fazendeiro vizinho. Rodeado por uma pequena roça de mandioca e meia dúzia de galinhas, Davies ocupa sozinho o primeiro lote do Assentamento Brasília, criado pelo Incra há três anos. Ali, tem apenas a companhia do rádio de pilha e de dois vira-latas. Sem energia elétrica nem água, vive com R$ 150 do aluguel de uma casa em Castelo. Também não tem o título de posse da terra. Cesta básica, bolsa-família e aposentadoria nunca beneficiaram o migrante.
Mais adiante, em Novo Progresso, município de 36 mil habitantes a 150 km no eixo norte da BR, a comerciante Rodemeire de Camargo, 42 anos, sofre, no único e desequipado hospital da cidade, para conseguir o diagnóstico da doença do filho de 16 anos. Para obter um exame de sangue mais preciso, teria que encarar 715 km da quase intransitável rodovia até Santarém ou voltar 600 km até Sinop (MT), trafegando por 360 km em uma estrada recheada de buracos de todos os tamanhos e profundidades.
Desde o primeiro solavanco na rodovia Cuiabá-Santarém, ainda na área urbana de Guarantã do Norte, a 50 km da divisa do "nortão" de Mato Grosso com o sudoeste do Pará, a precariedade da infra-estrutura, dos serviços públicos e a ausência quase total do Estado refletem a situação de abandono da região. A dura realidade dos dez municípios cortados pela BR-163, onde 90% do território é ocupado por reservas florestais, produz um forte contraste quando confrontada com os planos do governo para incentivar o chamado "desenvolvimento sustentável" da Amazônia e brecar o desmatamento ilegal.
Ao longo dos 360 km de crateras e poeirão da BR-163 entre Guarantã do Norte e Novo Progresso, percorridos pelo Valor, é possível ver extensas áreas de pastagem, fazendas cheias de gado nelore, imensas castanheiras queimadas em pé e um intenso vaivém de caminhões de oito eixos abarrotados de toras de madeira. E muito abandono. Em dois dias de viagem, à exceção de uma barreira fiscal próxima à base aérea da Serra do Cachimbo, a reportagem não viu vestígios de presença do Poder Público. Nenhum agente ou veículo oficial foi avistado nesse longo trecho não-pavimentado da rodovia aberta nos anos 70 pela ditadura militar para forçar a ocupação do território. Novo Progresso está na lista dos 36 municípios campeões do desmatamento ilegal, onde a derrubada da mata está embargada.
No início de 2006, o governo federal lançou um ambicioso plano que seria o "novo paradigma de desenvolvimento sustentável" para a Amazônia. O "Plano BR-163 Sustentável", que inclui 73 municípios da área de influência da rodovia, prometia amenizar a precariedade da vida dos moradores ao conjugar asfaltamento da estrada com ações de ordenamento territorial, infra-estrutura, fomento de atividades econômicas sustentáveis, melhoria dos serviços públicos, inclusão social e fortalecimento da cidadania. Dois anos e meio depois, o plano ainda não teve força para virar realidade.
E isso apesar do apoio obtido em 16 audiências públicas realizadas entre 2004 e 2005 com moradores da região, lideranças indígenas, movimentos sociais, ONGs e autoridades de todos os níveis. A resolução de graves problemas sociais, desde a escassez de emprego até a precariedade dos serviços sociais e a infra-estrutura incipiente, ainda parece utopia. "Não é o ritmo que a sociedade quer", admite o coordenador do comitê gestor do plano, Johaness Eck. "Tínhamos a expectativa de funcionar mais rapidamente, mas a ausência prolongada do Estado nos obrigou a fazer um trabalho de base, de ordenamento territorial", afirma Eck, também subchefe-adjunto de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República.
O próprio comitê é sinal da morosidade do plano. Até hoje, os membros não foram todos indicados e nenhuma reunião ordinária aconteceu. "Estamos muito aquém das ações previstas, e a lentidão da pavimentação tem afetado a credibilidade do plano", reconhece Júlio Miragaya, ex-secretário-executivo do plano e coordenador de Planejamento Territorial do Ministério da Integração Nacional. A pavimentação da BR, orçada em R$ 1,1 bilhão até 2011, é prioridade do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
De avanços substanciais, o governo aponta a criação de 6,8 milhões de hectares de unidades de conservação ao longo da BR e o início do asfaltamento de dois trechos de 20 km pelo Exército até o fim do ano. Ocorre que parte das unidades não tem, como previsto, gestores do Instituto Chico Mendes e as obras na BR só começaram, timidamente, no fim de junho. Houve atraso na liberação de verbas para contratação de pessoal e material de apoio ao Exército. Como as chuvas amazônicas começam em novembro e só dão trégua em junho, resta pouco tempo para avançar. "O plano está quase na estaca zero. O Incra não fez a regularização fundiária e as ações sociais ainda não foram implementadas", reconhece Luiz Antonio Pagot, diretor-geral do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT).
A promessa do Incra de determinar as coordenadas geográficas (georreferenciamento) de 7,7 milhões de hectares nas margens da estrada neste ano deve atrasar mais o início do processo de regularização fundiária. Assim, os assentamentos de reforma agrária seguem sem a documentação de posse, o que impede o acesso dos moradores aos serviços básicos. "É sofrido aqui. Não tem água nem luz, que dirá posto de saúde. Se quebrar o braço, tem que ir pro Guarantã [a 210 km]", diz Telmo Davies, que ficou seis meses acampado à beira da BR antes de ganhar o lote de 20 hectares em Castelo.
A situação piorou quando o Ministério Público Estadual interditou uma centena de assentamentos por irregularidades fundiárias e denúncias de corte ilegal da floresta. Davies confirma: "De noite, é caminhão o tempo inteiro. Não pára faz três anos. Só tem ´torero´, mas não tiro a razão de quem vende [a madeira]. A pessoa tem sete filhos para criar e faz o quê? O Incra jogou a gente aqui sem nada. Precisa o Ibama vir aqui".
A grilagem segue corriqueira, gerando violência, pistoleiros e mortes pela posse da terra. O governo admite a necessidade de "implantar o Estado de Direito na região", dada a dimensão do problema. Mas a instalação de delegacias da Polícia Federal e postos da Polícia Rodoviária na região ainda está no campo das promessas. "Aqui a pistolagem manda", diz o catarinense Cleo Almeida Becker, pioneiro de Castelo de Sonhos. Há 16 anos no lugar, dono de uma pousada, ele está de malas prontas. "Vou vender tudo e ir embora porque esse asfalto nunca vai chegar".
Para piorar, foi suspensa a aprovação de novos planos de manejo na região por falta de regularização fundiária. O Ibama repassou a ação à secretaria estadual do Pará. A medida é criticada pelos madeireiros. "Temos trabalhado na ilegalidade porque não temos os planos de manejo. Tem que comprar nota para transportar a madeira porque o plano depende de comprovar a posse da terra", diz Rusever Oliveira, presidente de uma associação de 24 madeireiras dos distritos de Castelo e Cachoeira.
Denúncias de corrupção dos fiscais são comuns. O Ibama também tem dificuldades para criar o chamado Distrito Florestal Sustentável da BR-163, área de 16 milhões de hectares onde seria permitida a exploração de até 6 milhões de m³ de madeira segundo regras mais rígidas. "Até agora só veio a parte ruim do plano, a repressão", diz Adriano Ferreira, secretário-executivo do Sindicato das Madeireiras do Sudoeste do Pará (Simaspa). "O governo precisa incentivar o manejo aprovando os planos. Ele ataca a conseqüência, e não a causa do problema, que é a ausência de Estado com infra-estrutura e regularização fundiária".
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