Por Washington Novaes
A queda, no pátio de um estacionamento, de um avião monomotor que um suicida tentava atirar contra o maior shopping center de Goiânia, na hora em que circulavam no seu interior milhares de pessoas, mais uma vez evidencia vulnerabilidades muito preocupantes de grandes aglomerados urbanos - já às voltas com momentos até de ingovernabilidade e domínio territorial por bandos criminosos ou grupos sociais inconformados (perueiros, motoqueiros, comerciantes irregulares etc.). Nem por isso, entretanto, ouve-se um início de discussão no setor público sobre a necessidade urgente de macropolíticas para esses aglomerados, que crescem e se verticalizam continuamente, quase sem nenhuma disciplina ou orientação, ao sabor apenas das chamadas "forças do mercado", mas com progressiva perda da qualidade de vida pelas populações, insegurança crescente, inundações e até, em certos setores econômico-sociais, inviabilização gradual.
A sequência de fatos é impressionante: uma pessoa já acusada de quatro delitos consegue, sem ser piloto habilitado e quase só com conhecimentos adquiridos na internet, apoderar-se de um monomotor numa cidade de quase 200 mil habitantes, bem próxima de Brasília. Voa em direção a Goiânia e começa por dar voos rasantes sobre o aeroporto dessa capital e passa a poucos metros de um Boeing. Embora seguido por um Mirage e um Tucano da Força Aérea, faz vários outros voos rasantes à beira de arranha-céus e de outro shopping e, sem ser impedido, arremete contra o shopping, onde caiu a dez metros da entrada principal. Quantas vulnerabilidades em terra e no ar, próximas à capital do País e à de um Estado, região metropolitana com quase dois milhões de pessoas!
É inevitável que a memória recue ao tempo em que Mao Tsé-tung tentava impor na China uma política de desconcentração populacional absoluta, mas por estratégia militar. Entendia ele que a concentração humana e/ou econômica criava alvos para o inimigo e abria caminho para a dominação militar. Sem concentração, esse eventual inimigo teria de ocupar todo o país - tarefa impossível. Pela mesma razão, tentava impor com a desconcentração uma política que levasse cada pessoa ao mais próximo possível da autossuficiência na produção de alimentos e outros itens de que necessitasse. Uma de suas radicalidades que o levaram à perda do poder.
Não precisamos, porém, tornar-nos maoístas dépassés para enxergar que precisamos introduzir rapidamente a discussão sobre macropolíticas nos nossos grandes aglomerados urbanos, antes que outras tragédias passem a frequentar nosso cotidiano. Mesmo com a atual crise global, não se consegue vislumbrar nenhuma estratégia que, ao lado de enfrentar as grandes questões econômico-financeiras, nos faça caminhar em direção a ambientes urbanos mais viáveis. Mesmo quando se discute, por exemplo, a oportunidade de introduzir veículos menos poluentes, que reduzam emissões e ajudem a enfrentar o drama do clima, em nenhum momento se agrega à discussão o drama já insuportável dos congestionamentos; ao contrário, segue-se debatendo apenas como retomar a alta produção, as vendas e os empregos no setor. Sem perguntar, por exemplo, o que vai acontecer numa cidade como São Paulo, já com mais de seis milhões de veículos, que ocupam mais de 50% do espaço urbano (incluindo o sistema viário, estacionamentos e garagens), para abrigar carros que consomem cerca de 90% da energia para transportar a si mesmos (e não passageiros), consomem 30 vezes mais energia para deslocar uma pessoa que o metrô (determinando um desperdício de R$ 1 trilhão em algumas décadas, como lembra o ex-secretário de Transportes Adriano Murgel Branco). E ainda permanecem ociosos a maior parte do tempo, porém gerando problemas gigantescos.
Apesar de licenciarem cerca de mil veículos novos por dia na cidade de São Paulo e tendo hoje em circulação mais carros do que quando foi introduzido o rodízio, os administradores não aceitam propostas como a do pedágio urbano para reduzir a pressão em certas áreas, facilitar o transporte coletivo e gerar receitas para outras soluções. Nem a ampliação do rodízio. Muito menos a exigência de retirar um veículo antigo de circulação para licenciar um novo. Nem mesmo uma proibição de fato rigorosa para cargas e descargas em certos horários, como já houve há mais de meio século. Ou questionar a ampliação da frota de motos, que, para ganhar tempo no trânsito, desrespeitam toda a legislação na área. Ou o aumento brutal da poluição urbana, que custa muitas vidas a cada dia, como tem demonstrado a Faculdade de Medicina da USP.
Enquanto isso, na área política só se ouvem discussões sobre procedimentos clientelistas, em que os depositários de votos tentam implantar alguma ação para um parcela específica dos eleitores em troca dos votos. A sociedade, por sua vez, não consegue se organizar e se informar para discutir políticas mais amplas. Campeiam as denúncias de corrupção, corporativismo, regras que beneficiam apenas os detentores de fatias do poder. Mas na área econômica a preocupação única parece ser com taxas de crescimento do PIB, como se esse fosse o único indicador eficaz de progresso real, ou com a redução/isenção de impostos, quando um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário aponta uma sonegação, só de empresas autuadas entre 2006-2008, de mais de R$ 200 bilhões (32% do Orçamento federal).
Não será pelos velhos caminhos que conseguiremos avançar de fato. Há outros. Um deles indica que está na hora de as universidades e outras instituições que dominam o saber retomarem um papel que já tiveram (e foi interrompido em 1964), de vanguarda das discussões e de mobilização da sociedade para debater rumos mais adequados. Não é preciso esperar que outros suicidas nos aterrorizem.
Washington Novaes é jornalista
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