Por José Maria Mayrink, enviado especial de O Estado de S. Paulo
Queimada é o caminho mais curto para derrubar a mata; dono de terra diz ser 'desbravador', não 'bandido'
TABAPORÃ, Mato Grosso - As queimadas destroem mais do que a derrubada de árvores no município de Tabaporã, no norte de Mato Grosso, onde está o assentamento campeão na lista dos cem maiores desmatadores do País, divulgada na segunda-feira pelo Ministério do Meio Ambiente. Ninguém no assentamento de Nova Fronteira, onde o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) distribuiu 1.012 lotes em 1998, contesta a informação, mas todos - de líderes de sindicatos e associações a sitiantes que exploram as terras, em lotes de 60 hectares para cada família - ficaram indignados com as acusações feitas contra eles.
"Não somos bandidos, como dizem no sul, somos desbravadores que estão construindo há 40 anos a riqueza deste Estado", diz o gaúcho Pedro Abraão Peloso, um dos pioneiros do desmatamento que, em sua opinião, foi e continuará sendo inevitável para o desenvolvimento agropecuário da Amazônia. "Comecei há 35 anos, manobrando tratores, quando aqui era só mato, e enfrentei com minha família (mulher e três filhos) todo o tipo de dificuldade. Agora, quando tenho um hotel modesto e um sítio fora do assentamento, devia ser chamado de herói, mas sou considerado um marginal."
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, o paranaense Jurandir Joaquim da Silva, que se licenciou do cargo para se candidatar a vereador pelo PDT, repete o mesmo discurso. Ele não nega a destruição das matas altas, mas insiste que os culpados são os fazendeiros e os pecuaristas, donos de grandes áreas, de até 20 mil hectares.
"Não há como explorar a terra sem desmatar, porque a gente não consegue plantar no pedacinho de terra, de 20% da área ou cerca de 20 hectares, que a lei permite derrubar. Os assentados optam pela criação de gado, mas não vão para frente com três ou quatro cabeças por hectare", afirma o presidente do sindicato. Por isso, a maioria devasta a floresta acima dos limites permitidos, para aumentar o rebanho ou plantar lavoura. "O meio ambiente está travando o desenvolvimento da região. Se tirar o assentamento, Tabaporã vai acabar."
A queimada é o caminho mais curto para derrubar a mata, como se vê na época da estiagem, que vai de maio a setembro. Boa parte da área do norte de Mato Grosso que aparece como desmatada nas fotos feitas por satélites é floresta destruída por incêndio. "Alguns são acidentais, mas a maioria é criminoso", diz o padre João Selhorst, que assumiu a paróquia de Santo Antônio em Tabaporã em 2000, quando quase tudo ainda era verde no município de quase 1 milhão de hectares. Toda quinta-feira, ele celebra missa na agrovila de Nova Fronteira, onde visita as comunidades católicas do assentamento.
O fogo devasta mais do que as derrubadas porque mata as árvores e impede a reconstituição da floresta, quando o incêndio se repete por dois ou três anos seguidos. Algumas semanas atrás, em agosto, um incêndio de origem ainda desconhecida atingiu cerca de 40 lotes do assentamento, ameaçando a vida de gente e gado. O fogo começou perto da estrada, ficou alojado por uns 15 dias em uma vegetação rala e depois avançou 700 metros pela mata afora, em direção ao Núcleo Santa Paulina.
"Lutei contra as labaredas durante quase 12 horas, desmaiei e, quando acordei no posto de saúde, achei que o barulho do ar-condicionado era o fogo vindo para cima de mim", contou o paranaense Nelson Florêncio de Andrade, dono de um lote de 61,8 hectares. Seus vizinhos, que também sofreram com o incêndio, acreditam que ele foi provocado.
A vegetação ao redor de seus lotes está calcinada. Apesar das primeiras chuvas da temporada, que começaram na semana passada, a fumaça continua subindo das cinzas, em meio aos esqueletos de árvores que estão de pé. O desmatamento parece igual, mas as árvores cortadas pelas motosserras podem rebrotar, aquelas que foram atingidas pelo fogo vão cair de podres.
"Se o governo está dizendo que a gente desmatou, a gente não vai negar, porque é a realidade", disse José dos Santos, apontando a devastação em Santa Paulina. Um dos pioneiros do assentamento, Donizete Lamera, confirma a informação. Quando ele e sua mãe, Dirce, se instalaram no assentamento, em 1998, o Incra permitia a derrubada de 50% do lote.
Juntaram os dois lotes que ocuparam e interpretaram a lei a seu modo para melhor explorar a terra. "Tenho 58 hectares de mata em pé, mas o da minha mãe, 66% do total, foi todo para o chão." Donizete aproveitou o incentivo do governo para construir uma casa e formar o seu gado, hoje um pequeno rebanho de 21 vacas, 2 touros e 9 bezerros. "Não planto lavoura. Vender onde?", questiona.
Primeiros ocupantes
Dos primeiros ocupantes dos 1.012 lotes do Incra, só 7% continuam em Nova Fronteira. "Os outros passaram a terra para a frente", calcula padre João. Segundo ele, muita gente trocou o lote por moto, bicicleta, revólver e até por passagens de ônibus para Cuiabá, que fica a quase 800 km. "Se o governo continuar com essa política, vai quase todo mundo embora", prevê o presidente da Associação de Moradores Amagron, Valdecir Streg, o Jacaré.
No dia 22 de agosto, vários sitiantes do assentamento foram multados em valores que não conseguiriam pagar, mesmo que vendessem seus lotes, avaliados, em média, em R$ 90 mil. Até a associação foi autuada e condenada a pagar R$ 14.815 por ter derrubado árvores para a construção da agrovila, projeto previsto e autorizado pelo Incra. Todos os multados recorreram à Justiça, mas nada ainda foi resolvido. Enquanto isso, não recebem financiamentos do governo nem empréstimos bancários.
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