Suplemento Meio Ambiente
Por CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Livro de brasilianista demonstra que caos fundiário foi o principal estímulo ao desmatamento no Brasil
"Entre os brasileiros que estudaram a história da mata atlântica e apreciam seus remanescentes, a floresta amazônica inspira alarme. O último serviço que a mata atlântica pode prestar, trágica e involuntariamente, é demonstrar todas as terríveis consequências de destruir sua imensa vizinha do oeste." Este alerta foi dado há 15 anos num livro que deveria ser leitura obrigatória para os brasileiros: o belo e deprimente "A Ferro e Fogo", do americano Warren Dean (1932-1994).
Na obra, a primeira grande historiografia ambiental brasileira, Dean narra a destruição da floresta atlântica da chegada dos portugueses até o governo Collor. Sua esperança era a de que a coletânea de crimes, irresponsabilidades e absurdos cometidos pelos brasileiros contra o próprio futuro pudesse fazer o país mudar de tática em relação à floresta amazônica. O plano não funcionou.
"A Ferro e Fogo" pode ser lido como um script quase completo dos processos atuais de destruição acelerada da Amazônia. Trocando nomes e datas, alguns trechos poderiam ter sido escritos ontem, mas com uma diferença importante: a velocidade. Jamais as taxas anuais de destruição da mata atlântica foram tão altas.
Já no ano da morte do brasilianista, quando o livro foi concluído, a euforia econômica induzida pelo Plano Real provocou o desmatamento recorde de 29.000 km2 da Amazônia.
Se fosse vivo, ele talvez tivesse comparado essa devastação, perpetrada em apenas um ano, com tudo o que a produção de açúcar derrubou da mata atlântica em 150 anos, entre 1700 e 1850: "meros" 7.500 km2.
Quando os números da mata atlântica ontem e da Amazônia hoje se igualam, é só para demonstrar a regra da destruição acelerada. "O regime de pecuária era notavelmente improdutivo. As pastagens nativas degradadas e as pastagens convertidas permitiam uma população de gado muito escassa, não mais do que uma cabeça a cada 2 ou 5 hectares." O trecho poderia estar falando do sul do Pará, onde a produtividade média do pasto no começo do século 21 é de meia cabeça por hectare. Mas ele se refere a Minas no começo do século 19.
Como na Amazônia, na mata atlântica o principal fator por trás da devastação era o caos fundiário. Sem títulos de propriedade claros, os fazendeiros tinham pouco estímulo para investir no aumento da produtividade. Sentiam-se à vontade para atender ao "chamado da floresta virgem" -a abertura de novas áreas de floresta para aproveitar a matéria orgânica do solo quando as áreas de ocupação mais antigas começavam a dar sinais de esgotamento.
Nas palavras de Dean, citando comentarista do séc. 19: "Os donatários derrubavam e queimavam a floresta, falhavam em melhorar a terra e, quando ficavam sem espaço para plantar, abandonavam as sesmarias a eles vendidas por quase nada e iam explorar outra doação ou reivindicar posse em algum outro pedaço de terra". O mesmo fenômeno acontece na Amazônia hoje, com um nome diferente: garimpagem de nutrientes. Ele é o motor da grilagem.
Crônica também tem sido a incapacidade do governo de fiscalizar as florestas. Mesmo após o estabelecimento do primeiro Código Florestal, em 1934, a guarda florestal prevista jamais foi estabelecida.
Após a Segunda Guerra, o governo deixa de ser um desmatador por omissão e passa a ser um dos agentes principais do desmatamento. Dean aponta aqui um conflito que viria a ecoar décadas mais tarde, na guerra do PAC contra a floresta: "Preocupado como o Estado havia se tornado com o desenvolvimento econômico, seu papel como protetor das florestas primárias remanescentes no país se tornara problemático".
Primeiro, com o nacionalismo varguista, que viu nascer uma aliança entre políticos e industriais e empreiteiras que garantia recursos naturais de graça para os últimos e dinheiro de campanha para os primeiros. Depois, com o milagre econômico dos anos 70, que levou o então senador José Sarney à sua declaração ilustre: "Deixe vir a poluição, contanto que as fábricas venham junto".
Nesta fase do saque dos recursos naturais, aponta Dean, o golpe de misericórdia foi a expansão maciça das hidrelétricas pelo Sudeste. Um dos pontos altos do processo, que inundou milhares de quilômetros quadrados de mata, foi a obliteração das Sete Quedas para a construção de Itaipu -o que levou Octávio Marcondes Ferraz, ex-presidente da Eletrobrás, a escrever que o Brasil era "um país de fatos consumados e contribuintes submissos".
Qualquer semelhança com Lula, Dilma Rousseff, Santo Antônio, Jirau e Belo Monte é mera repetição da história. Mas, num país cujo ato de fundação foi cortar uma árvore, como lembra Dean, repetir a história talvez seja apenas cumprir um destino manifesto.
OPINIÃO
Alarmismo pouco é bobagem
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
A visão de que ONGs ambientalistas misturam denuncismo vazio e sentimentalismo ao debate que deveria ser técnico é incorreta
Existe em alguns endereços chiques do Brasil a percepção de que organizações não governamentais (ONGs) ambientalistas atrapalham o desenvolvimento do país. Fariam isso, segundo esse ponto de vista, ao misturar alarmismo infundado, denuncismo vazio e sentimentalismo natureba a um debate que deveria ser objetivo e técnico. É uma visão parcial e, em grande medida, incorreta.
Já se foi o tempo em que apenas hippies e ex-marxistas sem rumo se convertiam para a causa verde como utopia substituta. Isso pode ter sido válido para alguns dos pioneiros que combatiam romanticamente a poluição das águas no Rio Grande do Sul ou a construção de um aeroporto em Caucaia do Alto, na Grande São Paulo. Hoje não é mais.
Desde pelo menos a fundação da organização SOS Mata Atlântica, em 1986, o melhor do movimento ambientalista brasileiro busca um pacto firme e duradouro com a ciência. Os resultados estão aí, conhecidos e citados por todos.
Os primeiros dados confiáveis sobre a destruição da floresta chuvosa que cobria a costa alcançada pelos portugueses em 1500 nasceram, em 1989, da parceria entre a SOS e o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Trata-se de um órgão de pesquisa ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
A parceria tinha por objeto usar imagens de satélite na composição de um atlas dos remanescentes florestais, como se começava a aplicar na época para a Amazônia. Assim se revelou que apenas 7% da mata atlântica sobreviveram. A única floresta que a maioria dos brasileiros conheceu e conhece está desaparecendo.
Hoje o Inpe conduz o mais avançado programa do mundo de monitoração de florestas tropicais por sensoriamento remoto. Há mais de duas décadas apura e publica os dados anuais oficiais de desmatamento da Amazônia (sistema Prodes). Desde 2004 o Prodes é coadjuvado por um acompanhamento mais ágil (Deter), quinzena a quinzena, para apoio da fiscalização do Ibama.
Também foi liderado pelo Inpe, com inspiração "ambientalista" ("ecológica" seria o termo cientificamente correto), o engajamento brasileiro no Experimento de Grande Escala Atmosfera-Biosfera da Amazônia. Mais conhecido como LBA, o projeto internacional foi o maior programa científico do Brasil durante anos e produziu conhecimento básico fundamental para começar a entender o papel da floresta amazônica no clima regional e mundial.
Informações de qualidade não eram produzidas só por militantes e investigadores do ambiente. Em paralelo, o Programa Povos Indígenas no Brasil, do Cedi (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), recolhia e mapeava dados para um catálogo cartográfico das etnias e terras indígenas do Brasil. Sempre foi uma fonte melhor, ao menos para jornalistas, que a chapa-branca Funai.
SOS e Cedi são as principais organizações que deram origem ao ISA (Instituto Socioambiental), que até hoje publica, a cada cinco anos, o indispensável volume "Povos Indígenas no Brasil". Toda a cartografia agora é digital, o que habilita o ISA a fazer estudos detalhados inéditos, por exemplo sobre superposição de terras indígenas e unidades de conservação.
Há exatos dez anos, o ISA atuou como coordenador de um histórico seminário em Macapá para identificar áreas prioritárias para conservação na Amazônia brasileira. Foi um esforço sem precedentes, patrocinado pelo Ministério do Meio Ambiente, para reunir o melhor conhecimento científico disponível sobre espécies e sua localização na região.
Com maior ou menor sucesso e meticulosidade, a experiência se repetiu para os outros cinco grandes biomas nacionais (Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal). Uma década depois, esses trabalhos ainda orientam a criação de unidades de conservação no Brasil. Dos seminários participou uma penca de organizações que ainda dariam o que falar.
No caso da Amazônia, sempre o bioma mais controverso, impuseram-se no debate público ONGs como o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). Ambas com sede em Belém, estão na vanguarda desse tipo inovador de ONG, dedicada a cavar, sistematizar e divulgar dados socioambientais que nem o governo detém.
Não faz muito tempo, quem precisasse de informações sobre a situação em torno da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) faria melhor em procurar o Ipam. Se necessitado de dados sobre localização e produção de polos madeireiros na Amazônia, ou sobre a agropecuária da região, o canal era o Imazon.
Em 2000, Ipam e ISA lideraram a confecção de um relatório de grande repercussão sobre o impacto do plano Avança Brasil, do governo FHC. Previa que 180 mil km2 de floresta amazônica pereceriam como consequência, em três décadas, no altar do desenvolvimentismo ambientalmente imprevidente. Foi manchete da Folha em 13 de março daquele ano.
Pelos dados do Prodes, 167 mil km2 da Amazônia perderam a floresta de lá para cá. Passaram-se só 9 anos dos 30 projetados (6 deles sob Lula).
Diante disso se poderia afirmar, com objetividade e fundamento técnico, que alarmismo pouco é bobagem. Em especial diante de um governo que deita tanto carvão, gás natural e petróleo na fogueira eleitoral para requentar o Avança Brasil com o molho salgado do PAC.
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