Por Daniela Chiaretti, de Cuiabá
Ele diz que a pecuária é ineficiente, que a agricultura pode se expandir sem pressionar a floresta e que a polêmica revisão do Código Florestal, em trâmite no Congresso, não precisaria alterar o percentual de 80% que hoje deve ser preservado em terras amazônicas. O dono deste discurso não é ambientalista de carteirinha mas Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do mundo e no segundo mandato à frente do governo do Mato Grosso, Estado que até há pouco era campeão inconteste do desmatamento no país.
Maggi diz que não, absolutamente, de jeito nenhum virou "verde". Mas suas atitudes recentes sugerem que os dias em que ganhou o prêmio "Motosserra de Ouro", do Greenpeace, e que ficou conhecido como "O homem por trás do estupro da floresta", na manchete de 2005 do britânico "The Independent", são coisas do passado.
Ele tem sido visto nas conferências internacionais do clima, circulado em encontros com ONGs em Washington e estimulado a discussão de questões ambientais com seus pares amazônicos no Forum dos Governadores da Amazônia Legal. Há poucos dias sediou em Cuiabá o Katoomba Meeting, um tradicional (e pequeno) encontro de cientistas e ambientalistas preocupados com a preservação das florestas - que na edição matogrossense reuniu inacreditáveis 1, 2 mil pessoas e atraiu também políticos e ruralistas interessados na discussão de como remunerar pelos serviços ambientais quem cuida das matas. Maggi pode não ter virado ecologista de alma, mas sua guinada pragmática é notória. "Morreríamos se continuássemos no confronto", diz, lembrando os dias de guerra com o universo verde.
Hoje adotou conceitos bem diferentes do homem que, "se deixar, planta soja até nos Andes", segundo a definição de Carlos Minc em início de gestão no Ministério do Meio Ambiente. Por exemplo: Maggi sabe na ponta da língua o que é REDD, a sigla que define Redução de Emissões por Desmatamento e Devastação que é a vedete das reuniões internacionais sobre mudança do clima. O conceito ainda é vago e não tem definição formal, mas trata-se de espaço nebuloso onde muita gente que discute a preservação das florestas enxerga cifrões. O governador parece estar alinhado a este grupo e tem sua própria tradução do que é REDD - uma espécie de aluguel pago a quem preservou a floresta. "Sobretudo entendemos que a floresta tem que ter algum valor", diz.
Valor: Por que o senhor trouxe o Katoomba para Cuiabá?
Blairo Maggi: Tenho que voltar um pouco no tempo. Durante a campanha eleitoral, em 2002, havia uma reclamação muito grande da condução do processo ambiental no Estado, não era nem Secretaria do Meio Ambiente na época, era uma Fundação. Eu venho do setor agrícola, do setor produtivo primário. A gente via a questão ambiental como grande opositora do processo produtivo. Era uma guerra. Eu me posicionei ao lado dos produtores, claro, e começamos um embate ambiental forte. Venci as eleições. Naquele momento a agricultura estava em franca expansão aqui no Mato Grosso, com uma grande ocupação de áreas. Já vinha num processo até chegar no ápice em 2004. Coincidiu a minha entrada no governo com desmatamento crescente no Estado. E eu, com algumas frases mal colocadas, com a forma como me dirigi à imprensa, especialmente a internacional, virei um diabo verde. Era o grande inimigo número 1 da floresta. Isto na avaliação deles. Na realidade, desde o dia em que cheguei comecei a botar ordem nesta questão. De sair do enfrentamento e procurar o caminho do entendimento.
Valor: Quando isto aconteceu, governador? Porque é ainda forte a cena do presidente da Fundação do Meio Ambiente do MT algemado, na Operação Curupira da Polícia Federal, em 2005...
Maggi: Desde o início tentamos a aproximação, mas não tinha espaço. E as coisas foram ganhando dimensões diferentes do que eu gostaria. Ao invés de ir para o consenso, ia-se para o enfrentamento. Culminou com a Operação Curupira no Estado do Mato Grosso, onde entramos meio de gaiatos. O Ministério Público pra cá, nós pra lá, aquela confusão. Ali tomei uma decisão radical: pensei, não posso mais continuar do jeito que está. Estou tentando o entendimento, não consigo, só estou ampliando a guerra. A estratégia está errada. Chamei o Ministério Público estadual e o federal e as ONGs e abri o governo para eles. Disse: "Olha gente, a minha questão é acertar, só que não estou conseguindo me comunicar com vocês."
Valor: E conseguiu?
Maggi: A criação da Secretaria do Meio Ambiente foi um sinal claro que as coisas poderiam ser diferentes, que o caminho poderia ser outro. Começamos a criar uma secretaria forte, aumentamos o orçamento, fizemos concurso público, criamos uma dinâmica nova. Feito este acordo mínimo internamente, pensei que era hora de sair para fora. Comecei a procurar alguns fóruns na área ambiental para levar as propostas do Mato Grosso. Fiz uma reunião em Washington com muitas ONGs, cheguei lá, os caras queriam me matar. Lembro bem da cena, comecei a conversar e os caras fazendo caretas. Até que parei e disse: "Olha gente, fiz um passo em direção a vocês e quero conversar. Mas o que estou sentindo é que do lado de vocês não está tendo reciprocidade. Estou aqui falando e não vejo ninguém concordar comigo. Então ou vocês dão um passo na nossa direção ou eu dou um passo de volta e vou tocar a minha vida." A partir dali as coisas começaram a fluir.
Valor: Fluir como?
Maggi: Comecei a participar de eventos fora e a abrir o governo na área ambiental para que todos pudessem olhar e propor. Levei, desde a primeira reunião, os setores produtivos também. Falei a eles: "Olha gente, do jeito que está vamos morrer todo mundo, não vai dar. Ou a gente faz alguma inversão neste processo que fale com consciência do que estamos fazendo, que é dever nosso fazer e não só uma questão política, ou vamos acabar 'esnucados' aqui no canto". Levei Federação da Agricultura, do Comércio, da Indústria, representantes de sindicatos, de produtores rurais. Foram para Bali [na conferência do clima de 2007] e para um monte de lugares defender as posições do Mato Grosso.
Valor: A sua é uma mudança pragmática, então...
Maggi: É pragmática mas com consciência. Não é assim: "Vou fazer porque o mercado me pede". Vou fazer porque tenho necessidade e quero fazer. Por isso levei os setores produtivos comigo. Porque não adiantava nada só o governo fazer uma guinada e a turma continuar levando do mesmo jeito. A mudança foi de política de governo, mas em concordância com os setores produtivos. Este é o grande ponto do Mato Grosso.
Valor: A base acha que o senhor virou verde?
Maggi: Não, não, não. Bem, alguns mais radicais, sim. Não foi simples. Era assim: o ambientalista era ambientalista e nós, o outro lado. Mas neste meio tempo as coisas começaram a clarear também nas questões ambientais, o aquecimento global, o posicionamento mais concreto dos cientistas. E nós, nestas idas para fora do Brasil levamos a mensagem de Mato Grosso, o que estávamos fazendo. Porque a questão ambiental não passa só pelo desmatamento. Como se produz sustentadamente? Com plantio direto, fazendo com que a água da chuva não escorra diretamente para os rios, por exemplo. Aí fui neste evento Katoomba, em 2008 e os convidei para fazerem o próximo onde os problemas estão.
Valor: A reunião com Arnold Schwarzenegger, governador da Califórnia, tem a ver com isso?
Maggi: Não, é outro passo. Fui à conferência de Báli, participei, com a ministra Marina [Silva, ex- ministra do Meio Ambiente] da criação do Fundo Amazônia. Em 2008 fui a outro evento nos EUA sobre questões ambientais. Schwarzenegger montou um grupo com os governos de Wisconsin, Illinois, Califórnia, da Indonésia, e nós, governadores amazônicos. Assinamos lá um memorando, uma intenção de REDD [Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação], que é o que nos move hoje. Estamos organizando agora uma reunião com Binho [Arnóbio Marques, governador do Acre], Eduardo [Braga, do Amazonas] e Ana [Julia Carepa, do Pará] para, nos próximos dias, tentar tirar uma posição conjunta de como o REDD interessa aos Estados. E aí vamos ver qual é a política do governo federal.
Valor: Qual o impacto podem ter programas de REDD no Estado?
Maggi: Sobretudo entendemos que a floresta tem que ter algum valor.
Valor: Quanto de florestas o senhor ainda tem aqui?
Maggi: Temos 64% do território ainda do jeito que era. O restante utilizamos assim: 8% usamos para agricultura. Presta atenção: Mato Grosso é o maior produtor de soja do Brasil, maior produtor de algodão, segundo maior produtor de milho, terceiro maior de arroz. Temos uma indústria de etanol boa. A gente faz tudo isso em 7,8% do nosso território. O restante, para fechar os 36% que faltam está vinculado à pecuária. Temos uma ocupação em torno a 25% do nosso território em pecuária, para um rebanho de 26 milhões de cabeças. É muito ineficiente. Muita terra e muito gado, mas muita terra para pouco gado. Temos que criar mecanismos para usar área da pecuária para fazer agricultura e concentrar este gado em uma área menor sem haver necessidade de ir para cima da floresta.
Valor: E o REDD?
Maggi: Precisamos entender que para quem está na floresta, nestas áreas mais ao Norte, a lei permite que se use 20% do território e 80% é preservado. Mas 20% você pode usufruir, converter, fazer novas aberturas, o que quiser. É sobre estes 20% que o Mato Grosso está trabalhando o REDD. Se eu tenho áreas para abrir de agricultura em cima da pecuária e tenho como concentrar a pecuária, preciso ter um programa para segurar o desmatamento. O REDD vem neste sentido. Estou atuando daqui pra lá com o aumento da produção de grãos e preciso vir da floresta para cá para não deixar o desmatamento crescer. O Estado sozinho não tem condição de parar isso.
Valor: É para não tirar os 20% ?
Maggi: Sim. Não tenho como negar a autorização do desmate e não tenho como pagar para que não aconteça. Não se trata de um programa de pagamento de serviços ambientais para aquele que desmatou nos 80%. Quem está ilegal, está ilegal e vai responder pela ilegalidade. Mas como convenço quem tem direito a converter a floresta a não converter? Pagando para não fazer isso. As discussões hoje são ainda incipientes, projetos pequenos, de privado para privado. Não existe ainda um mecanismo oficial, regulado como no Protocolo de Kyoto. Nossa ideia, agora, é fazer um encaminhamento ao governo federal de uma proposta de REDD da região amazônica.
Valor: Os governadores amazônicos têm posições diferentes nisto.
Maggi: Sim, temos. O Amazonas defende outra coisa. Só que acho que fazer REDD com 100% da floresta amazônica não vai ter Casa da Moeda que dê conta.
Valor: E o governo federal, como vê este movimento?
Maggi: O governo é um pouco reticente. Ainda ontem ouvi uma fala do medo sobre a soberania nacional. Eu não vejo assim. É um tipo de aluguel de uma área para preservação ambiental, como é que se perde soberania nacional?
Valor: E o Fundo Amazônia? Os governadores pedem descentralização do governo federal...
Maggi: Todos temos a preocupação de que se ficar centrado na mão do governo federal, o dinheiro vai ficar lá. O dinheiro da Noruega já chegou, o ministro Minc fala "apresentem seus projetos", os projetos serão apresentados e não se sabe quando o dinheiro será liberado. E ninguém tem projeto até agora porque não se sabe o que pode colocar lá. Desde dezembro não teve outra reunião do Fundo, para você ver como a burocracia é. Não conseguimos até agora entender como vai funcionar, onde vão ser apresentados os projetos, como serão avaliados.
Valor: Qual sua posição sobre o Código Florestal?
Maggi: Este é um assunto hoje que preocupa mais o Sul e Sudeste que propriamente a Amazônia. Porque já temos uma lei aqui que estamos obedecendo há algum tempo que é a questão dos 80% de reserva na Amazônia. Tem setores que reclamam para voltar para 50% a possibilidade de abertura, mas eu particularmente não vejo assim, acho que 20% para usar e 80% de reserva já está bom. Nós já estamos há mais de 10 anos nesta legislação, quase todo mundo já se enquadrou. Para o Sul e Sudeste a coisa é mais preocupante, porque lá em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, Minas, no Paraná, o pessoal não têm 20% de reserva. No Sul e Sudeste a área de proteção permanente (APP) não existia, APP de rio não tinha, de morro não tinha, planta-se uva no cume da montanha, fazem maçãs nas escarpas, plantam café nos morros do Espírito Santo e arroz nos banhados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O que a gente sentia aqui no Mato Grosso e na Amazônia é que tem uma lei ambiental que só é para a gente, para o outro lado não é assim. Não vejo necessidade de mudança, mas tenho que reconhecer que muitos segmentos da Amazônia acham que tem que ter. Agora, sou contra uma posição, que vejo às vezes gente defender em Brasília, que é a possibilidade da reserva legal do Sul e Sudeste vir a ser feita aqui na Amazônia. Não concordo com isso. Quero que cuidem da floresta deles lá. O ecossistema tem que ser como um todo. Não pode pegar e empurrar todo mundo aqui pra cima na Amazônia e dizer vamos fechar a Amazônia e fazer festa no resto do Brasil. Não. A lei tem que ser igual para todo mundo.
Valor: O Mato Grosso é estratégico para a Amazônia. Se este Estado se tornar mais verde, segurará a pressão nos mais preservados?
Maggi: Segura. Por isso acho que o REDD é mais importante para o Mato Grosso, para Rondônia, para parte do Pará do que os demais Estados. Esta é a discussão que temos dentro do Fórum. Não que não tenham necessidade ou não mereçam receber pelos serviços ambientais em outro lugar. Temos que buscar uma metodologia para que isso aconteça, mas em termos de conservação, onde o REDD tem mais efeito hoje é na pressão do arco do desmatamento, no arco de fogo onde está o problema. Se segurar aqui e não deixar que haja fuga do desmatamento, conseguimos segurar para o Norte também.
Valor: Como o senhor desvincula o que está dizendo com a queda do preço das commodities?
Maggi: Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Aconteceu lá atrás porque a gente estava ocupando áreas de Cerrado. À medida que a soja ficava mais cara, abriam-se mais áreas. Hoje não se faz mais isso. E tem a moratória da soja também, que está funcionando.
Valor: A discussão do que é Amazônia e do que é Cerrado é forte?
Maggi: Sim, é. Esta é a confusão que estamos tentando desenrolar. Acabamos de comprar imagens da empresa francesa Spot, com resolução de 2,5 metros. Vai ser um instrumento fantástico, vamos ver até formiga. Então o Estado vai poder licenciar e saber exatamente por onde passa a linha do bioma. Sem nenhum risco de colocar alguém na zona de 80%. O que é, é o que é.
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