Por Mauro Zanatta
Trégua em RR esconde tensão permanente
Em Roraima, ninguém está satisfeito com a homologação da reserva indígena Raposa Serra do Sol em área contínua. Nem mesmo os índios macuxi, principais beneficiários da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em ratificar a demarcação de 1,75 milhão de hectares na região da fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana.
A aparente trégua entre as duas entidades de representação indígena, produtores de arroz, pecuaristas e governo estadual esconde um permanente estado de tensão. Ninguém tira o olho de ninguém. A situação é agravada pela presença ostensiva de agentes da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança na reserva e nas ruas da capital. O Exército também tem realizado exercícios de guerra com a infantaria e helicópteros de combate.
A instabilidade nas relações piora com a proximidade do prazo final para a conclusão da retirada dos "não índios" da reserva em 30 de abril. Na semana passada, alguns arrozeiros começaram a desocupar as fazendas e a retirar parte dos equipamentos e maquinários da área estimada em 25 mil hectares. Mas o gado, cujo rebanho é calculado em 5 mil cabeças, permanece lá.
O desejo de ficar parece tentador. A ratificação da homologação, votada em meados de março pelo STF, é vista como uma "decisão de gabinete", desconectada da realidade local. Os grupos políticos, que começam a buscar apoios e aliados para as eleições de 2010, perceberam as insatisfações e querem transformá-las em voto nas 15 cidades do Estado. Além das disputas partidárias, há problemas concretos. É nítido o sentimento de inimizade entre os dois grupos indígenas rivais, dominados pela etnia macuxi.
Os produtores reclamam da disparada dos preços das terras em áreas fora da reserva e das baixas indenizações pagas pela Funai por benfeitorias. As indenizações somariam R$ 40 milhões, segundo os fazendeiros, mas a Funai teria depositado R$ 4 milhões nas contas. E o Ibama ameaça multar os produtores por crimes ambientais, o que reduziria ainda mais os pagamentos. Pequenos pecuaristas e empregados de arrozeiros alegam não ter renda nem lugar para onde ir. E, mesmo com a cessão de 6 milhões de hectares de terras da União ao Estado, o processo de reassentamento dos produtores é lento e envolve a burocracia de vários órgãos federais e estaduais.
Há uma semana em Roraima, o presidente do Tribunal Regional Federal (TRF), Jirair Meguerian, tem advertido a todas as partes que a decisão do STF será cumprida no prazo. "Farei o possível para chegar ao fim sem a retirada forçada. Mas dependemos do Executivo para recolocar o gado e assentar as pessoas", diz. As forças federais estão de prontidão para iniciar a desocupação no fim deste mês. No sábado, o desembargador reuniu-se com o governador Anchieta Junior (PSDB) e a bancada de deputados e senadores para pedir a aceleração nas ações de reinstalação dos ocupantes. Há 58 localidades com casas, fazendas e lotes que devem ser desocupadas até o dia 30. "Quando os arrozeiros saírem, os índios vão se acertar. Há inimizade, mas eles são parentes, são da mesma etnia", diz Meguerian.
O arrastado processo de desocupação de Raposa Serra do Sol, iniciado ainda em 2004, desgasta e divide a sociedade local. O sentimento anti-indigenista tem se encorpado nas cidades. Os brancos olham torto para os índios. Todos têm argumentos e motivos para defender suas posições. Como pano de fundo, os interesses eleitorais são os mais óbvios, mas há questões econômicas, religiosas e estratégicas em contraposição. A soberania nacional também passou a figurar na contenda. Militares lembram o poder e a influência de ONGs "infiltradas" entre os índios e alertam para o perigo da formação de uma nação indígena autônoma. Ao lado de Raposa, está a área homologada de quase 10 milhões de hectares dos índios ianomâmi. Cidades como Uiramutã e Normandia correm o risco de desaparecer do mapa em razão do isolamento. Além disso, teme-se um conflito entre os índios após a saída das forças federais da região. A inimizade entre os grupos rivais da mesma etnia macuxi já levou algumas famílias a deixarem a reserva rumo à periferia de Boa Vista. Com isso, vêm os problemas sociais. Meninos de pele escura e olhos "puxados" já perambulam pelas ruas da capital.
O momento é crucial para a esperada "virada de página" no conflito, já que o caso tornou-se parâmetro para novos julgamentos da mesma natureza. Mas as diferenças persistem. Os índios favoráveis à desocupação estão insatisfeitos com algumas das 19 condições impostas pelos ministros do STF para determinar a saída dos produtores da reserva. Ligados à Igreja Católica, os membros do Conselho Indígena de Roraima (CIR) queriam restringir o acesso ao local. Mas a Corte garantiu a livre entrada da Polícia Federal e do Exército nas 200 comunidades espalhadas pela Raposa Serra do Sol, além da construção de infraestrutura básica e proibição da exploração dos recursos minerais sem prévia autorização. Eles também não queriam a permanência de "não-índios" nas comunidades. "O ideal era não ficar. Mas o Supremo já decidiu. Se ficarem tranquilos, podem permanecer", diz o tuxaua (líder indígena) coordenador do CIR, Dionito de Souza. Há três anos na região, o bispo de Roraima, dom Roque Paloschi, concorda: "É preciso um equilíbrio nesta questão. Eles precisam escrever a própria história. O que é direito, é direito."
Insatisfeitos com a retirada de arrozeiros e pecuaristas, os membros da Sociedade de Defesa dos Índios do Norte de Roraima (Sodiurr) pregam a necessidade de desenvolvimento econômico para a sobrevivência dos indígenas na região. Evangélicos, defendem a manutenção dos "não-índios" na reserva e querem explorar as riquezas minerais compostas por nióbio, ouro e diamante sem a tutela do Estado. Recém-nomeado secretário estadual do Índio e fundador da Sodiur, Jonas Marcolino rejeita a "visão ambientalista" que prevaleceu na defesa da demarcação contínua. "Tentam manter o índio isolado, no papel de explorado e oprimido, mas nem Ibama e Incra vão impedir a vontade do povo." Sobre a rivalidade com os "irmãos" do CIR, o tuxaua formado em matemática e estudante de Direito insiste: "Não queremos conflito, mas estamos preparados." Sua irmã caçula, diretora da escola da comunidade do Contão, é casada com um branco. "Se eles quiserem que os não-índios saiam, têm que tirar lá primeiro."
Principal protagonista da resistência dos arrozeiros à desocupação, o gaúcho Paulo César Quartiero afirma ter um "compromisso moral" de respeitar a decisão do STF. Ex-prefeito da fronteiriça Pacaraima, insiste no direito dos fazendeiros, acusa o Estado de ignorar os produtores como "parte interessada" no processo e não descarta uma reação à desocupação. "Se houver alguma provocação, estaremos atentos", afirma, em referência às forças policiais. O agrônomo, que já foi preso por incidentes violentos com os índios do CIR, informa que iniciou a retirada de equipamentos de irrigação e de máquinas usadas nas lavouras de arroz e soja. "O gado vai ser mais difícil. Ontem (quinta), gastei dois tanques de combustível rodando atrás de fazendas. Não tem pastagem pronta em quantidade suficiente", diz.
Apontado como virtual candidato ao governo do Estado, o líder ruralista desconversa: "Vamos ver o movimento. As coisas estão muito paradas." Adversários veem o dedo de Quartiero até mesmo na greve da Polícia Militar do Estado. "Agora, tudo é culpa minha?", rejeita, em tom indignado. Irônico, provoca as autoridades: "Aqui, só temos uma fábrica, que é a maternidade. Quero ver como vão fazer sem produção de comida." O empresário diz que a retirada da área da reserva levará R$ 2,8 milhões do seu bolso. Estão incluídas 200 viagens de carretas, aluguel de pastagens, guinchos e despesas com diárias de funcionários.
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