Por MARINA SILVA
PASSOU-SE MAIS uma Páscoa, para alguns associada apenas a uma animação incomum no comércio. Despida de seus sentidos mais profundos, é como se tivéssemos caído na toca do coelho de Alice e saíssemos lambuzados de chocolate, sem saber bem o como nem o porquê.
E, no entanto, os diferentes significados da Páscoa, tanto para os judeus quanto para os cristãos, nascem de belos momentos da história da humanidade e de sua espiritualidade, essenciais para refletirmos sobre a ideia da passagem, da saída de uma situação para outra, de superação, de salvação.
Na Páscoa dos cristãos, é central a figura de Jesus salvador, o Messias que se sacrificou pela humanidade. Chegam a ser chocantes, em nossos dias, expressões como "salvador da pátria" e "figura messiânica", pejorativamente associadas, ainda que de forma remota, a Cristo. Os salvadores de hoje são os que imaginam poder tudo, inclusive substituir a vontade dos demais pela sua suposta capacidade iluminada de decidir por todos. Nada mais longe do Cristo.
Encanta-me em Jesus ter sido, ao contrário dos autoproclamados messias contemporâneos, um arauto da prevalência da vontade e do desejo das pessoas, do livre-arbítrio. Um episódio, o do encontro com o cego de Jericó, exemplifica o que quero dizer. Jesus pergunta-lhe: "O que queres que te faça?". E o cego responde: "Senhor, que eu veja". Ao lermos o texto, à primeira vista a pergunta de Cristo parece um tanto absurda, pois ele poderia simplesmente restituir a visão ao cego. Por que perguntar o óbvio?
A resposta, que ressalta também em outras passagens bíblicas, é que Jesus, em lugar de tão-somente afirmar, preservava o espaço de escuta e de escolha das pessoas, a partir de suas circunstâncias. Até mesmo diante de Pilatos, que lhe perguntou se era mesmo o filho de Deus, respondeu: "Tu o dizes".
Na era de crises em que vivemos, tudo o que as pessoas mais querem é que alguém decida por elas: como sair da derrocada econômica, como pagar as prestações, como e em quem votar. E se conformam com o lugar de espectadores-seguidores que lhes é dado.
Impossível não lembrar, das entranhas da Páscoa, que as nossas marcas são a da escolha e a da vontade. E de que isso foi deixado muito claro por alguém injustamente usado como parâmetro para apontar os messiânicos de nosso tempo. Aqueles que se sentem senhores dos destinos alheios e nada mais fazem do que usurpar o papel insubstituível de cada um na superação constante, que é a forma de nos encontrarmos e aos outros nos caminhos que entendemos ser os da nossa salvação.
MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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