Por Washington Novaes
A demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol em área contínua ainda gera manifestações de desagrado e até de inconformismo, dos dois lados. A própria Fundação Nacional do Índio (Funai) acha que as 19 regras criadas no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para novas demarcações criam dificuldades extremas, e por isso pede esclarecimentos ao Ministério Público (Radiobrás, 30/3). O presidente da Funai, Márcio Meira, diz que os índios na Amazônia "sempre foram mais avançados que os brancos - ditos civilizados - que ocuparam a Amazônia há apenas 400 anos e passaram a destruir a floresta. Os índios a ocupavam há mais de 13 mil anos e sempre preservaram o meio ambiente" (Correio Braziliense, 8/2).
Do ponto de vista jurídico, a demarcação em área contínua parece inquestionável, principalmente depois do parecer do constitucionalista José Afonso da Silva, citado neste espaço (22/8/2008), lembrando que o "indigenato" (direito dos índios à ocupação de terras onde vivem tradicionalmente) é reconhecido desde as cartas régias do governo português, a primeira delas em 1680, e continuou inscrito em todas as constituições brasileiras, de 1891 até 1988. Mas agora, com as 19 regras, preveem-se muitas dificuldades para demarcações, a começar pelas áreas dos guaranis-caiuás, em Mato Grosso do Sul - tema sobre o qual o autor destas linhas escreve há mais de 20 anos. Eles vivem confinados em áreas onde a exiguidade de terra por habitante os impede de viver nos modos tradicionais de suas culturas. Mas também não têm formação que lhes permita viver fora de suas terras, onde acabam fazendo o caminho tradicional, de boias-frias a alcoólatras, mendigos e loucos. Por isso os índices de desnutrição de crianças ali e as taxas de suicídio de adultos são altíssimos - centenas já se mataram. Um deles, um jovem de 17 anos, enforcou-se numa árvore no dia seguinte ao do seu casamento. E deixou escrito na areia, sob seus pés: "Eu não tenho lugar."
Será complicado, de modo geral, principalmente para os povos ainda isolados ou sem reconhecimento de suas áreas. Por isso seria preciso relembrar os vários estudos, principalmente do Instituto Socioambiental (ISA), de São Paulo, sobre a importância das áreas indígenas para a conservação da biodiversidade (o Brasil tem de 15% a 20% do total mundial). Elas têm-se mostrado mais eficazes que qualquer outro caminho, mesmo o de áreas de preservação reconhecidas em lei, parques, estações biológicas, etc. E a biodiversidade será uma das chaves do futuro na geração de novos medicamentos, novos alimentos, novos materiais que substituam os que se esgotarem ou inviabilizarem (como derivados do petróleo). Ainda na semana passada, ao participar em São Paulo do evento Brasil e a Cúpula de Londres, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, deixou isso claro ao se referir à temática dessa reunião do G-20: não é possível discutir a crise econômico-financeira global sem tratar, ao mesmo tempo, de mudanças climáticas, florestas (e sua importância para o clima), biodiversidade, recursos hídricos e pobreza.
Se é assim, não se deve esquecer o mais recente relatório - Situação das florestas no mundo 2009 - divulgado há poucos dias pela Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que nesta versão coloca ênfase na questão da demanda por madeira e observa que "há uma forte correlação entre desenvolvimento econômico e situação das florestas", uma pressão que cresce rapidamente, mas diferenciada por regiões: as que já alcançaram alto nível de desenvolvimento econômico são capazes de estabilizar ou até aumentar suas áreas florestais, enquanto nas outras o aumento da demanda leva à redução dos estoques. Isso leva à exigência de mecanismos para proteger a biodiversidade, a terra, a água e a capacidade de armazenar carbono.
A influência da atual crise na área de florestas dependerá, segundo a FAO, de seus vínculos com cada setor econômico - habitação, por exemplo. Nos EUA, no início de 2006, o cálculo era de 2,1 milhões de casas novas por ano; em outubro de 2008, menos de 800 mil, com forte queda na demanda por madeira. E o Brasil será afetado, diz o documento, que se mostra preocupado com uma queda na disposição das sociedades de pagar por serviços ambientais e também com a redução nos mercados de carbono, que levaram à queda de mais de 50% no preço da tonelada comercializada no âmbito da Convenção do Clima. Também as transferências internacionais para reduzir emissões pelo desmatamento estão-se reduzindo e tendem a cair ainda mais, diz.
A queda na demanda por madeira pode beneficiar as florestas, mas também pode levar a um aumento na extração ilegal de madeiras, afirma o relatório. Como pode levar a um aumento no êxodo, para as regiões de florestas, de pessoas desempregadas pela crise. Já a queda no preço de commodities (soja e carnes) pode reduzir a pressão pela abertura de novas áreas até aqui ocupadas por florestas. De qualquer forma, conclui o documento, "é improvável que a demanda por madeira volte, num futuro previsível, ao pico de 2005-2006".
Um quadro a ser muito avaliado. Já se tenta criar a ideia de que o Brasil é um país avançado no combate ao clima, com suas "metas" ("voluntárias", e não compromissos formais) de redução das emissões pelo desmatamento - quando o critério proposto toma por base uma década de forte desmatamento e com isso cria meta que praticamente já foi atingida com a redução nos últimos anos por causa da queda de preços da carne e da soja, que baixou a pressão por novas terras na Amazônia; quando ainda nem se têm ações concretas para reduzir o desmatamento no cerrado (que responde por quase 40% das emissões); e quando nem sequer se ouve uma palavra oficial sobre as emissões de metano na pecuária.
É preciso avaliar tudo com muito cuidado, inclusive o papel dos índios nesse quadro do clima e das florestas.
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