Por Roldão Arruda
Estudo mostra onde está o País moderno e as áreas em que se explora até trabalho escravo
O Brasil agrário é um mundo ainda marcado por grandes fluxos migratórios, disputas territoriais e contradições. O moderno e o arcaico convivem nessa parte do País, que abriga 16,4 milhões de pessoas e onde a concentração da propriedade permanece alta, apesar das políticas de redistribuição de terras. É isso o que sinaliza o recém-lançado Atlas da Questão Agrária Brasileira - conjunto de quase 300 mapas, acompanhados de análises, resultante da tese de doutorado do geógrafo Eduardo Girardi, desenvolvida no Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Poucas vezes um conjunto tão abrangente de informações sobre a questão foi reunido num estudo. Ele mostra que em determinadas partes do Brasil predominam relações trabalhistas avançadas, em termos capitalistas, envolvendo assalariados com altas rendas, enquanto em outras é possível encontrar empregados submetidos a condições de trabalho sub-humanas, semelhantes às da escravidão. Existem zonas de alta produtividade agrícola, com notável índice tecnológico, ao lado de terras sub-exploradas, mantidas como reserva de valor.
A movimentação de dinheiro, tecnologias e pessoas é tão grande que, em dez anos, entre 1996 e 2006, a área de agropecuária na Amazônia Legal cresceu 23 milhões de hectares - vastidão maior que a do território do Paraná. No mesmo período, os assentamentos da reforma agrária receberam 3,2 milhões de pessoas; e, no sentido inverso, 1,5 milhão de brasileiros foram obrigados a deixar o campo, por causa do desaparecimento de seus empregos.
É uma realidade complexa, difícil de ajustar num retrato. Mas é justamente essa a proposta do Atlas, cuja feitura contou com recursos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Combinando informações conhecidas com outras inéditas e utilizando, exaustivamente, técnicas cartográficas, ele procura flagrar o que ocorre nesse mundo, que abrigava 44% da população do País 30 anos atrás e hoje contém o equivalente a apenas 8,2% do total.
O foco principal de Girardi, que defende franca e abertamente a reforma agrária, é a questão da propriedade da terra. Um dos capítulos mais detalhados do Atlas é o que trata da estrutura fundiária do País - com mapas inéditos sobre a situação dos Estados e municípios. Fica-se sabendo ali que, ao contrário do que acreditam líderes dos movimentos de sem-terra, a propriedade da terra não ficou mais concentrada nos últimos anos. Utilizando os dados disponíveis, Girardi mostra que houve até uma alteração para menos no chamado índice de Gini - critério de avaliação que varia 0 a 1, sendo que quanto mais alto maior é o grau de concentração de terras. Entre 1992 e 2003, o índice nacional baixou de 0,826 para 0,816 - uma variação de -0,010.
Não se trata, porém, de motivo para comemorar. Segundo Girardi, a marca de 0,816 é das mais altas, sinalizando que a terra continua concentrada nas mãos de poucos proprietários. Por outro lado, ela indica também o fracasso das políticas de reforma agrária desenvolvidas por sucessivos governos.
Entre 1979 e 2006, foram criados 7.666 assentamentos da reforma agrária, cobrindo uma área de 64,5 milhões de hectares. Era de se esperar que isso tivesse um impacto maior do que o registrado nos índices de concentração fundiária. Por que não teve? Em entrevista ao Estado, Girardi observou que nenhum dos governos esteve realmente interessado na reforma agrária, preocupando-se sobretudo em conter as pressões dos movimentos sociais e os conflitos no campo.
"Eles fazem isso sem alterar a estrutura fundiária", disse Girardi. Como é possível? Segundo o pesquisador, quem olhar o mapa da estrutura agrária verá que as ocupações de terras ocorrem numa área do País, no Centro-Sul e Nordeste, enquanto os assentamentos são concentrados na Região Norte: "Desde o regime militar, assentam-se pessoas nos confins da Amazônia, com o objetivo de não alterar a estrutura do Centro-Sul."
Outro objetivo dos governos, ao fincar assentamentos na Região Norte, seria engordar estatísticas: "O reconhecimento de posses, antigos projetos de colonização e unidades de conservação de uso sustentável são contados como assentamentos."
Girardi se opõe ao modelo agrário baseado no agronegócio, especialmente o da monocultura de soja, que atingiu seu ápice em Estados como Mato Grosso e Goiás. Recomenda uma intervenção maior do Estado, para impedir que terras continuem a ser usadas com fins especulativos e para incentivar o que chama de agricultura camponesa - aquela baseada no sistema familiar de produção.
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