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Eventos internacionais de inspiração oposta se defrontam numa conjuntura de desafios e de agudo pessimismo
CALOR e festas em Belém do Pará, muito desânimo e clima gélido em Davos, na Suíça. Como acontece todo ano, transcorrem simultaneamente, na desconexão que se conhece, dois megaeventos dedicados a debater os destinos do planeta.
Reunindo militantes de diversos movimentos antiglobalização, o Fórum Social Mundial de Belém constitui antes de tudo um palco de protestos, a que não faltam elementos bizarros e atitudes performáticas. A famigerada "sociedade do espetáculo" se infiltra num acontecimento em que, do marxismo ortodoxo à mística "new age", o único ponto real de convergência é a condenação do atual sistema de poder.
Com alguma ironia, pode-se dizer que o Fórum Econômico de Davos nunca esteve tão perto de condenar, por seu turno, esse mesmo sistema. Revela-se tão grave a crise mundial que propostas anteriormente capazes de provocar escândalo hoje são discutidas com respeito naquele círculo seleto, em meio ao pânico e ao "mea culpa".
Diante da notícia de que até o diretor do FMI Jaime Caruana defende a estatização de alguns bancos, como forma de recuperar um sistema de crédito em colapso, é forçoso concluir que, neste momento, roteiros clássicos no cenário mundial se embaralham e revertem com rapidez.
A confiança absoluta na desregulamentação do mercado e a generalizada indiferença com relação aos sinais de alerta emitidos por alguns poucos analistas econômicos -estigmatizados por seu suposto catastrofismo- desaparecem do horizonte das discussões. É como se estivesse em curso até mesmo uma competição em sentido inverso, na qual nenhuma descrição do quadro financeiro global soa pessimista o bastante para obter consenso.
Seja como for, o Fórum de Davos deste ano reflete um processo de mudanças na agenda global que não se limitam ao problema mais urgente da crise financeira. Assim como o ultraliberalismo econômico, também os atuais mecanismos de decisão internacional estão sob questionamento. Aspectos tão diversos como o desequilíbrio ecológico, o terrorismo, o narcotráfico ou os conflitos étnicos e religiosos regionais ultrapassam a capacidade de intervenção de uma única potência, ou do restrito clube dos países mais desenvolvidos.
"Um outro mundo é possível", repetem os participantes do Fórum Social Mundial. Não, com certeza, o dos sonhos variegados e extravagantes que se expõem fugazmente no evento de Belém do Pará. Mas é também verdade que o mundo real, tantas vezes celebrado em Davos com otimismo, terá de ser reformado.
A confiança excessiva nas próprias crenças não caracteriza apenas os entusiastas de Belém; mas ao menos o choque de realidade, que ainda parece faltar a estes, vai atingindo seus distantes congêneres na Suíça.
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