Proprietários reclamam da obrigação de conservar 80% do terreno.
Sem seguir a regra, eles não estão conseguindo financiamento.
A regra que proíbe bancos de concederem créditos a agricultores amazônicos que não estejam em dia com a lei ambiental tem trazido dificuldades a proprietários rurais na Amazônia.
Com base em imagens de satélite, o governo elaborou uma lista com 36 municípios considerados campeões do desmatamento. Apenas no primeiro semestre de 2008, 612 áreas foram embargadas pelo Ibama, acusadas de fazer desmatamento ilegal.
Uma delas está na Fazenda Sanga Clara, município de Brasnorte, uma propriedade com quase 10 mil hectares que mexe com lavoura e gado. A área que está embargada é de 296 hectares, que foram abertos em 2002. A área foi usada para colocar pastagem para o gado.
“Eles alegam que nós não tínhamos autorização para abrir nesta área. Houve uma inversão de derrubada, mas continuo com a quantidade de reserva obrigatória, 50%. A multa foi de R$1,48 milhão. Estamos recorrendo, porque é impossível pagar este valor”, explica Júlio Poletto, administrador da fazenda.
Seu Júlio afirma que o erro foi comunicado à Secretaria de Meio Ambiente do estado, na hora da renovação da LAU – a Licença Ambiental Única, documento que o governo de Mato Grosso exige de todas as propriedades rurais do estado. É uma espécie de atestado de boa conduta, uma garantia de que as propriedades rurais trabalham dentro da lei.
Por decisão do governo federal, esse licenciamento se tornou obrigatório pra todas as fazendas da Amazônia.
Demora na aprovação
O engenheiro florestal Ivan Smiljanick Neto faz projetos de licença ambiental no norte de Mato Grosso e reclama do tempo que leva para se aprovar uma LAU. “Eu tenho exemplo de duas propriedades: em uma delas a licença saiu depois de oito meses, outra já pediu há quatro anos e não sai”, conta Neto.
O secretário do Meio Ambiente de Mato Grosso, Luiz Henrique Daldegan, afirma que o prazo de aprovação pode mesmo variar bastante. “A licença ambiental tem um trâmite em que nós verificamos a sua documentação, verificamos se não há a sobreposição, é muito variado. Demora seis meses, às vezes um ano, e quando você tem pendências, mais do que isso”, admite Daldegan.
O governo também quer saber a localização exata e o tamanho correto de cada fazenda da região. Para isso, desde 2003, vem exigindo que todas façam o chamado georreferenciamento, o mapeamento preciso da propriedade, feito com a ajuda de satélite.
No começo do ano, o Incra determinou que todos os imóveis rurais da Amazônia com mais de 400 hectares fizessem um recadastramento. Para isso, era preciso apresentar dados do georreferenciamento. Poucos agricultores compareceram.
O presidente do Incra, Rolf Hackbart, explica como se faz para aprovar um projeto de georreferenciamento. “Depende de cada caso, mas em média demora um mês ou dos. Antes levava muito mais. O Incra está cheio de processos internos que nunca foram analisados”, ele afirma.
Seu Itamar Budach é um dos agricultores que não fez o recadastramento. Ele é dono de uma fazenda de quase 2,5 mil hectares em Brasnorte, comprada em 1994. Quando chegou à região, seu Itamar planejava explorar metade da fazenda, como permitia a lei da época; em 14 anos, só conseguiu abrir 500 hectares de terra. “Falta recurso. O rendimento pecuário não é aquela coisa, e é tudo muito caro aqui, muito custoso”, diz ele.
Como só abriu 500 hectares de terra, seu Itamar tem a reserva legal de 80%, como manda a lei. Só que ele não tirou a licença ambiental, não fez georreferenciamento e, portanto, não pôde recadastrar a propriedade no Incra. Do ponto de vista do governo, está ilegal, e por isso vai enfrentar outra dificuldade: a falta de crédito.
Bancos
O Conselho Monetário Nacional decidiu restringir a liberação de dinheiro para quem não tiver cadastro atualizado da propriedade, não apresentar a LAU ou sofrer qualquer tipo de embargo de área pelo Ibama. “Não fiz essas documentações primeiro pela questão financeira, e agora nós estamos com deficiência de profissionais, engenheiros para fazer os mapeamentos. Estão todos atarefados”, justifica seu Itamar.
A decisão do Banco Central desagradou muita gente, como o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi. “O produtor sem dinheiro é o estado sem dinheiro. Quer dizer, o estado vive da agricultura e da pecuária. Nós temos hoje cerca de 20% da nossa economia dentro deste problema de crédito”, diz ele.
Até o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, critica a resolução do Banco Central. “Na minha visão, ela foi totalmente errada. Tem um grupo que está desmatando; nós deveríamos identificar este grupo e atuar em cima deste grupo, embargar a área deste grupo. Nós acabamos adotando uma medida generalizada, que atinge milhares de agricultores que não têm absolutamente nada a ver com este desmatamento que estava acontecendo numa determinada região”, acredita ele.
Já para o ministro do Meio Ambiente, a restrição ao crédito é uma arma eficiente no controle do desmatamento. “Caetano Veloso falou que a grana constrói e destrói coisas belas. O crédito financia produção, emprego e consumo, e ás vezes ele acaba financiando também grilagem e devastação. Quem insistir em não regularizar a terra, não legalizar a reserva, poluir, queimar e desmatar, vai sentir a mão pesada da Polícia federal e do Ibama. Acabou a moleza”, afirma Carlos Minc.
Mato Grosso tem 560 assentamentos. Quase metade deles dentro do Bioma Amazônia. Um deles, no município de Brasnorte, fica bem na margem do rio Juruena.
O assentamento Juruena 1 tem 15 mil hectares; as primeiras famílias chegaram ao lugar em 1998, mas a área só foi regularizada em 2002. São 259 lotes com tamanhos que variam de 50 a 70 hectares, dependendo da qualidade da terra.
O paranaense Renato Gonçalves está no assentamento desde o começo. “Quando vier a chuva, vou plantar arroz e depois o milho safrinha”, planeja. Renato também cria algum gado de corte e umas poucas vacas de leite. Toca todo o serviço sozinho. Sem recurso próprio, seu Renato e os vizinhos dependem do crédito oficial para tocar as propriedades.
Os agricultores foram surpreendidos pela resolução do Conselho Monetário Nacional, que restringe o crédito pra quem não respeita o meio ambiente. Agora, para conseguir financiamento, eles têm que apresentar a licença ambiental – ou, pelo menos, uma declaração do Incra de que todo o assentamento está em conformidade com a lei. “A minha área não tem reserva legal de mata. Nenhuma aqui tem; tem só em beira de rio, ainda. Não adianta falar que está legal, porque não está. Agora, não sei como nós vamos fazer. Nós queremos trabalhar”, diz seu Renato.
Segundo o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso, Adão da Silva, milhares de famílias do estado estão na mesma situação. “Nós temos em torno de 70 mil a 80 mil pequenas propriedades que não vão conseguir pegar nenhum tipo de recurso aqui no estado”, informa Silva.
Os assentados têm mais uma preocupação. Para conseguir o licenciamento ambiental, eles têm que cumprir a lei: destinar 80% da propriedade para a reserva legal. No Juruena, nos lotes de 50 hectares, o agricultor só vai poder explorar dez. “Todo mundo tem um pedacinho de chão para trabalhar, e é pequeno. Seria muito bom se a gente tivesse uma ajuda para produzir em pouca área de terra, mas desse jeito não dá”, reclama seu Renato.
Jorge Dias é um dos vizinhos do seu Renato. Filho de trabalhadores rurais, ele formou-se técnico em agropecuária. Em 2001, foi para o assentamento onde vive com a mulher e a filha. Ele também não tem reserva legal. “Se a gente deixasse a reserva legal, seria impossível o pessoal sobreviver aqui dentro. A pessoa pode viver com quatro alqueires perto de um grande centro, produzindo verdura, legumes, frutas e essas coisas. Aqui, nessa distância, não é possível. Ou você planta arroz e milho, e aí precisa de uma grande produção para sustentar a família, ou vai mexer com leite”, argumenta ele.
É mesmo o leite que hoje sustenta a família do Jorge. “A gente tira em torno de 130 litros de leite por dia. Nós estamos com 14 vacas”, diz. Com pouco gado, criado só a pasto, a produção e o ganho da família sempre foram pequenos.
Numa tentativa de melhorar a renda da propriedade para poder viver só da terra, no começo deste ano Jorge fez uma sociedade com seus irmãos para comprar um resfriador, com capacidade para 1,6 mil litros de leite. Jorge também resfria o leite de 13 vizinhos e ganha para isso R$ 0,05 por litro. “A gente tira uma renda bruta de R$ 2,4 mil a R$ 2,5 mil por mês. Sobra líquido, para cada um, em torno de R$ 400”, calcula.
Para aumentar a renda, Jorge pretendia investir no melhoramento da pastagem e do rebanho. Para isso, já tinha dado entrada com pedido de financiamento no Banco do Brasil – mas, como não tem licença ambiental, o pedido não foi aprovado.
O presidente do Incra, Rolf Hackbart afirma que a entidade está tentando acelerar o licenciamento ambiental dos assentamentos. “Nosso objetivo é fazer o licenciamento de todos os assentamentos do país, mas são sete mil. Então, vai demorar”, ele admite. “Para a próxima safra, nós estamos fazendo parceria com os governos estaduais, assinando termos de ajuste de conduta, termos de compromisso e planos de trabalho para fazer o licenciamento prévio dos assentamentos”, explicou.
Por enquanto, na prática, para o Jorge e os outros assentados da Amazônia, o que existe é preocupação. “Nós dependemos desse recurso oficial do governo, porque é um juro menor num prazo bom para a gente poder pagar. Hoje, nós estamos impossibilitados disso. Sem esse dinheiro, não tem condição; é melhor nós abandonarmos o emprego e irmos embora, voltar cada um para o seu emprego e trabalhar”, concluiu.
A Amazônia brasileira abriga quase 25 milhões de pessoas. O desafio, hoje, está em preservar esse ambiente fundamental para todo o planeta – e, ao mesmo tempo, encontrar saídas para as populações que vivem lá.
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