segunda-feira, 20 de julho de 2009

Valor - Desenvolvimento: Reconstrução da rodovia Porto Velho-Manaus divide o governo, mas já atrai muitos migrantes


Ao longo da carcomida rodovia BR-319, contrastes e nuances da dura realidade se multiplicam em uma das regiões mais preservadas da Amazônia. A meio caminho entre Manaus e Porto Velho, prospera o descontrole sobre a extração ilegal de madeira, a grilagem de terras e o garimpo irregular. E o crônico abandono de moradores seduzidos pelo Estado para povoar a região nos anos 70 soma-se à derrubada de florestas, pecuária clandestina e questões indígenas insolúveis.

Devastação e abandono prosperam na BR-319

Por Mauro Zanatta, de Humaitá e Manicoré (AM)

As obras de reconstrução da estrada de 870 quilômetros, conduzidas em ritmo lento pelo Exército no trecho já licenciado (até Humaitá), avançam de Rondônia em direção ao coração do Amazonas, onde a BR-319 cruza a lendária Transamazônica. Quase uma picada no meio da floresta em alguns trechos, a 319 corta uma área do tamanho da Espanha e divide o governo federal. O Ibama, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, rejeitou a licença ambiental para o resto da estrada, mas o DNIT, do Ministério dos Transportes, lista argumentos econômicos e sociais para tirar do papel o projeto, incluído como prioridade no PAC. Em 1977, na inauguração, a estrada era toda asfaltada.

Os interesses eleitorais na BR são evidentes. O ministro Carlos Minc (PT) sofre pressão de ONGs ambientalistas para resistir ao cerco do colega Alfredo Nascimento (PR), pré-candidato ao governo do Amazonas. O Valor percorreu, a partir de Porto Velho, 1 mil km no sul do Amazonas - na 319 e na Transamazônica - para registrar os impactos da rodovia sobre a vida de moradores e cidades limítrofes.
Da presença do Estado, há apenas as placas do DNIT e do Exército anunciando "portais" de fiscalização ao longo da estrada. A PM amazonense tem apenas 300 homens para impor a lei em um território duas vezes maior do que o Estado de São Paulo. A Polícia Rodoviária desativou, há dois anos, seu único posto em Humaitá e a Polícia Federal mantém o efetivo a 200 km dali, em Porto Velho.

Longe dos olhos do Estado, a vida segue. Nem mesmo a profusão de buracos e atoleiros de todos os tamanhos, que insinuam as dificuldades para tocar a obra, têm sido obstáculo a uma corrida migratória no sul do Amazonas. Uma "bolha" imobiliária já começou na área de influência da BR e os índios das etnias apurinã e mura querem a demarcação de suas terras antes do avanço das obras.

A forte demanda por madeira embala sonhos na região onde o rebanho bovino supera 1 milhão de cabeças. As obras para garantir Manaus como sede da Copa do Mundo de 2014 estimulam a cobiça. Haveria demanda para 300 mil m3 de madeira, um negócio de R$ 2 bilhões nos próximos anos. Boa parte dessa matéria-prima deve sair do sul do Estado. Na beira da BR-319, pequenos lotes são vendidos por R$ 200 ou R$ 300. Um projeto de assentamento de 48 mil hectares, situado entre a BR e o caudaloso rio Madeira, começa a receber as 144 famílias escolhidas pelo Incra. O assentamento, ironicamente batizado de Realidade, repete o processo patrocinado pelo regime militar na década de 70.

Mesmo sem licença ambiental, as áreas de até 100 hectares começaram a ser ocupadas. E desmatadas. "Depois de reabrir essa BR, vai chegar mais especulação e vão querer vender os lotes. Na beira da estrada, vai ter corte raso e invasão", prevê a chefe do Incra de Humaitá, Terezinha Leite Barbosa. "Vão pintar e bordar, a não ser que botem um pelotão armado". Indicada há seis anos pelo hoje senador João Pedro (PT-AM), ela lidera nove servidores e aponta grilagem, pressão política e concentração da terra como as chagas da região.

O Incra admite que Realidade repetirá a história fundiária de Santo Antonio do Matupi, uma agrovila do município de Manicoré, no meio da Transamazônica e distante 320 km da BR-319. "Lá, eram 596 famílias no projeto. Mas as pessoas venderam as terras e aquilo já virou um fazendão de 300 mil hectares", diz Terezinha.

Desde 2000 como bispo de Humaitá, o alemão dom Franz Meinrad Merkel defende a BR e resume seu impacto ambiental a "uma questão política" de Brasília. "Se houver fiscalização rigorosa, não tem impacto", diz. "Mas o Estado precisa assumir o controle. Sem isso, a avidez pelo lucro vai prevalecer". O bispo afirma que os fiéis católicos estão aflitos. "Aqui, não há latifundiários. Temos quase um culto à floresta e precisamos dar esse passo para o desenvolvimento", prega.

Mas as florestas de Realidade correm risco. Três serrarias próximas ao vilarejo devem ser reativadas. "Precisamos dessa alternativa para sobreviver. Se não for isso, o que será?", defende o prefeito José Sidnei Lobo (PMDB). Ele promete apoiar a abertura de estradas para os lotes do Incra e cobrar de Manaus as autorizações para exploração seletiva (planos de manejo), paralisadas desde o fim de 2008. Hoje, o Amazonas tem uma fila de 816 planos para 1,2 milhão de hectares. Sem os planos, cresce a extração ilegal. O escritório regional do Ibama avisa não dispor de efetivo para fiscalização, mas pede urgência na aprovação dos manejos. "Sem isso, vão fazer de qualquer jeito", diz o chefe-substituto Francisco Araújo. "Não temos efetivo nem parceria com o órgão estadual. É impossível fazer bem feito".

De fato, alguns caminhões de toras já circulam pela BR. E os carros do Ibama estão no pátio. "Vai ter derrubada, sim. Podemos abrir 20%. E aqui não dá para viver sem plantar", avisa Josimar Santana Brito, 30 anos, vice-presidente da associação de moradores de Realidade. "O extrativismo dá para dois meses. E depois, fazemos o quê?", indaga. O vilarejo de Josimar tem dois bares, cinco igrejas, um "orelhão" movido a bateria solar e algumas casas cobertas de palha. Água encanada e energia chegaram há dois meses. Um cabo de fibra ótica da Embratel margeia a estrada, mas não há carros, posto de saúde nem ambulância. Tudo vem de Humaitá por um desconfortável trajeto de 100 km. São seis ou sete horas na carroceria do único veículo comunitário, um caminhão doado à associação de moradores pelo governo federal. Para desalento local, nem mesmo as duas novas unidades de conservação vizinhas garantiram a presença do Estado. Realidade vê imperar a dureza cotidiana.

Todos os dias, famílias inteiras chegam ao vilarejo formado por 60 famílias. O comerciante capixaba Osmar Oliveira da Cunha, 36 anos, gastou R$ 23 mil para erguer um galpão onde devem parar os ônibus da linha que rasgará os 600 quilômetros da BR em direção a Manaus. "Breve hotel e restaurante", diz a placa. Para a esposa e os quatro filhos, Osmar improvisou uma "meia-água" e já trabalha em dez pequenos quartos de alvenaria para futuros viajantes. Evangélico, como boa parte dos moradores, ele toca na igreja e vendeu três casas em Colniza (MT) e em Matupi para investir no negócio. "Vou colocar até internet aqui", planeja. Ele gastará mais R$ 50 mil na obra e em condicionadores de ar, geladeiras e televisões. Dono de 400 hectares no assentamento, Osmar também quer ganhar com manejo e "aluguel" da floresta. "O governo ainda vai pagar para a gente não desmatar", aposta.

Pioneiro do novo Eldorado regional, o pecuarista goiano João Nogueira Nascimento, 50 anos, comprou algumas áreas e doou 15 hectares para urbanização. "Com essa BR, isso aqui vai explodir de gente. Vamos ter 400 famílias." E aposta que, em "seis ou sete anos", o lugar vira cidade. Dono de 220 bois, diz que a prefeitura construirá mais 60 casas em 40 dias.

Mas promessas e sonhos também causam desilusão. A PM do Amazonas registra um aumento de conflitos agrários e de violência gerada por disputas em garimpos ilegais e no tráfico de drogas pelo rio Madeira. O coronel Daniel Piccolotto, comandante da Regional Sul da PM, critica o Ibama pela proibição do plantio de grãos nos chamados campos naturais da região. "Isso piorou o quadro. Tiraram o arroz e forçaram o produtor a virar madeireiro", analisa. Defensor da BR e das madeireiras, o gaúcho, que tenta impor a lei em uma área duas vezes maior do que o Reino Unido, diz que "só não há tragédias maiores" por causa da dificuldade de acesso na floresta. "A situação hoje na BR é tranquila, mas esse 'meião' vai ser um problema. Fica longe de tudo e não tem controle", diz, apontando no mapa um trecho de 450 km da rodovia sem vilarejos nem ação pública.

O descontrole na região não poupa nem o Exército. O 54º Batalhão de Infantaria de Selva foi obrigado a mudar os controles para evitar a devastação de 45 mil hectares de florestas da União sob sua jurisdição. "Já entraram vários madeireiros lá. Intensificamos as patrulhas e passamos a usar a área para treinar a tropa", diz o coronel Renato Nery. No comando de 600 homens, acha que a BR deve trazer "tráfico de drogas e bandidos", mas ressalva que o asfalto ajudará a romper o isolamento. "Vai ter impacto, vai ter grileiro, mas não podemos condenar as cidades ao congelamento econômico. Não dá para ficar isolado para sempre." Em Humaitá, o Exército também atua como hospital.


Pedágio provoca tensão entre índios e vizinhos

De Manicoré e Humaitá (AM)

Os índios das etnias Tenharim e Diahoi, que ocupam três áreas com 1,2 milhão de hectares na área de influência da rodovia Transamazônica, estão a um passo de um confronto armado com moradores de comunidades vizinhas. A cobrança de pedágio de quem atravessa os 60 quilômetros da estrada federal em suas terras e o garimpo ilegal nas reservas são causas da crescente animosidade mútua.

A criação do pedágio improvisado, depois transformado em "taxa de compensação ambiental", tem apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai) para tornar-se definitivo. "Queremos regularizar esse pedágio porque houve danos ambientais, prejuízos à caça e doenças de brancos nas aldeias", afirma o chefe do núcleo da Funai em Humaitá, Valmir Parintintin.

Na agrovila de Santo Antonio do Matupi, a 30 quilômetros da reserva, os moradores criaram uma sociedade para pregar o fim da cobrança, iniciada no fim de 2006. "Para o índio não tem lei. Fazem o que querem e se acham acima de tudo", diz o produtor paranaense Osvaldo Schaeffer, presidente da Associação de Pais em Defesa da Cidadania. Há 30 anos na região, ele acusa os Tenharim de usar prerrogativas constitucionais de proteção para praticar ilícitos. Contrário ao pedágio, o bispo de Humaitá, dom Franz Meinrad Merkel, culpa a falta de diálogo e a Funai pelo conflito. "Os índios deixaram sua cultura para viver desse dinheiro." Estima-se uma arrecadação mensal de R$ 60 mil. Os motoristas pagam entre R$ 10 (motos) e R$ 100 (caminhões) para trafegar.

O pedágio teria começado com um embate entre índios e o Exército durante as eleições de 2006. "Um capitão vinha de Apuí (250 quilômetros da reserva) e quis passar à força com a tropa. O cacique João Bosco mandou serrar a ponte e passou a cobrar de todos", lembra Valmir Parintintin. A questão virou uma disputa na Justiça estadual, onde uma ação civil pública pede a retirada do pedágio. Mas os índios prometem contra-atacar. "Temos laudos para provar os danos", diz o chefe da Funai.

As ameaças de ambos os lados continuam. "Me disseram que sou visado para ser refém", diz o bispo Merkel, que não arrisca atravessar a área em carro particular. "Só vou em ônibus de linha", afirma. O comandante da PM, coronel Daniel Piccolotto, alerta para um iminente confronto armado. "Os índios têm armas e os madeireiros também. Isso pode dar em morte se o governo federal não intervir."

Os moradores da região apontam outra questão grave. Um garimpo ilegal de cassiterita, fonte do estanho usado em supercondutores e soldas especiais, está incrustado na reserva indígena, na área Igarapé Preto, quase na divisa do Amazonas com Rondônia. Uma picada, batizada rodovia do Estanho, foi aberta na área para escoar a produção. Negociantes e garimpeiros moram dentro da área e os índios cobram 10% sobre o mineral extraído, segundo o serviço de inteligência da PM. "Vamos fazer uma operação conjunta com a Polícia Federal e o Ibama para combater essa extração ilegal", diz o coronel Piccolotto.

A Funai admite a ilegalidade do garimpo, mas culpa a mineradora Paranapanema por ter aberto e abandonado a área nos anos 80. O chefe da Funai defende uma ação judicial para cobrar indenização da empresa. Procurada, a Paranapanema não se manifestou. Os Tenharim, segundo Valmir Parintintin, estariam apenas "reaproveitando" a areia da área.


Agrovila tem 4º maior índice de desmatamento

De Manicoré (AM)

A espessa nuvem de poeira levantada pelo vaivém de caminhonetes e caminhões cobre o comércio da rua principal de Santo Antonio do Matupi. A agrovila de 8 mil habitantes, no meio da rodovia Transamazônica, tem 29 serrarias, 66 mil cabeças de gado e ostenta o quinto maior índice de desmatamento da floresta amazonense.

Conhecida como "Km 180" da BR, a vila de 1.019 casas é apontada pelo governo estadual como um dos principais eixos da devastação ambiental na região Sul. Até 2007, foram derrubados 140 mil hectares. E o ronco potente dos "bitrens", caminhões de carroceria dupla com capacidade para até 50 m3 de madeira, não deixa dúvidas de que o verão amazônico estimula a produção madeireira.

No vilarejo, vizinho aos 876 mil hectares do Parque Nacional Campos Amazônicos, quase todo mundo tem ligação com madeireiras ou fazendas de gado. Até mesmo os assentados pelo Incra em um gigantesco projeto de 360 mil hectares. E todos reclamam da demora na concessão de novas autorizações para a exploração seletiva da madeira, os chamados planos de manejo. Dos madeireiros ao administrador local, passando pelas freiras missionárias e as lideranças comunitárias, todos criticam os órgãos ambientais. Os madeireiros afirmam ter registrado 43 pedidos de novos planos. E dizem que, desde novembro de 2008, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) deixou de emitir as licenças. Em Manaus, a diretora do Ipaam, Aldenira Queiroz, contesta. Diz que autorizou planos para 50 mil m3 de madeira no local. "Vamos liberar mais assim que nossa equipe voltar do '180', na próxima semana", afirma.

Algumas madeireiras admitem informalmente a ilegalidade. Mas, oficialmente, dizem beneficiar apenas toras de planos de manejo. "Tentamos trabalhar de forma legal, mas tem gente derrubando de qualquer jeito", diz Cesar Ramos, 34 anos, dono da Madeireira Monte Cristo. "A gente quer trabalhar direito, mas não consegue. É só blá-blá-blá e quem resolve nunca vem aqui". Cesar e a esposa, Jéssica, tocam a serraria com planos autorizados pelo Ipaam em 2007. Mas têm outros cinco pedidos para 180 mil m3 de madeira em análise desde o início de 2008. "Já gastamos R$ 120 mil e nada acontece", afirma. O empresário paga R$ 5 mil a um "despachante" em Manaus para tentar acelerar o processo.

O administrador de Matupi, Edson Minoro Tsugawa, reforça as críticas: "O Incra manda fazer as picadas laterais e construir a casa para dar o título de posse, mas o Ibama multa se fizermos isso", atesta.

Outro problema comum aos madeireiros são as áreas na chamada zona de amortecimento do parque nacional. Nelas, é ainda mais difícil obter autorização. "Tem áreas sem escritura e os órgãos ambientais não se entendem sobre o que exigir", diz, em referência ao Ipaam e o Instituto Chico Mendes (ICMBio). O Ipaam admite problemas e promete resolver.

Mesmo com a lentidão oficial, comboios com até 15 "bitrens" circulam dia e noite pela Transamazônica, deixando para trás as marcas de imensos atoleiros formados no período chuvoso. A 36 horas de barco da sede municipal, a vila de Manicoré quer virar cidade para resolver seus problemas. "Aqui, falta a presença do Estado", diz a missionária católica Lucie Tokoyo Buna. Membro da ordem Comboniana, a congolesa relata problemas com drogas, prostituição infantil e violência rural. "Os pequenos são punidos pela ação dos grandes. E o governo abandonou as pessoas aqui". (MZ)

Crédito da imagem: Ruy Baron/Valor

Um comentário:

Unknown disse...

BOA NOITE,MEU SOBRE NOME É ZANATTA,SOU AQUI DO SUL,MAS DE VEZ EM QUANTO ESTOU AI EM HUMAITA,VOCE TEM PARENTES AQUI NO SUL?