terça-feira, 14 de julho de 2009

Valor - As diversas farras na Amazônia

O caloroso debate sobre o avanço da pecuária na Amazônia, fomentado pelo boicote de grandes cadeias de supermercados a grandes frigoríficos, pelo recente relatório do Greenpeace ("A farra do boi na Amazônia") e pelas manifestações apimentadas do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, aponta para alguns culpados, uns menos, outros mais, mas tem um foco enviesado.

Opinião

Por Rodrigo C. A. Lima

Enquanto for mais barato derrubar a floresta do que recuperar áreas degradadas, será difícil reverter essa tendência

Os argumentos centrais para esse boicote "à carne que devasta a floresta" são os seguintes: a) a expansão da pecuária na Amazônia é a principal causa do desmatamento; b) o Brasil se tornou o maior exportador de carne bovina graças à derrubada dessas árvores; c) os produtores e os frigoríficos situados nessa região não seguem a legislação ambiental e, como consequência, a carne que produzem não é sustentável; d) o Estado brasileiro e bancos privados financiam a devastação ao conceder crédito aos frigoríficos.

Quando lidos isoladamente, esses argumentos parecem inquestionáveis, o que ajuda a reforçar perante a sociedade brasileira e o mundo a necessidade do boicote à carne, bem como de subprodutos como couro. Vou me ater aos três primeiros argumentos a fim de mostrar que não são tão verdadeiros quanto parecem.

Existem vários fatores que fomentam o desmatamento no bioma Amazônia e taxar a pecuária como o principal deles é mascarar a realidade. É natural que a pecuária cresça em áreas já desmatadas, pois é praticamente o único uso econômico existente para a terra nua, muitas vezes abandonada por madeireiros, posseiros e grileiros.

O ponto que precisa ser extensamente debatido é que não tem nada de errado produzir nessas áreas, desde que sejam cumpridos os critérios ambientais definidos pela lei. Mas aí é preciso lembrar que o bioma Amazônia reflete uma realidade ambiental, social e econômica muito peculiar. Em um universo de 22 milhões de habitantes (Amazônia Legal), com um Índice de Desenvolvimento Humano que varia de médio para baixo (Pnud), a pecuária se torna uma atividade atrativa e quase única para milhares de pessoas. Um pequeno produtor vizinho a uma floresta intocada tem grandes chances de derrubá-la mesmo sabendo que não é o dono da terra, pois, na medida em que possa agregar mais dez animais a sua produção, poderá ganhar um dinheirinho a mais e dificilmente o dono da terra vai aparecer. Esse exemplo é hipotético, mas certamente reflete uma realidade que não será alterada sem que esforços pesados de regularização fundiária sejam tomados.

Outro ponto que deve ser ponderado é a existência de enormes áreas de assentamentos que na maioria dos casos não têm apoio técnico e científico algum do governo. Basta olhar para os dados do Incra e constatar que até 2007 15% do Estado do Amazonas (21,3 milhões de ha), 15% do Pará (18,8 milhões de ha), 24% de Rondônia (5,8 milhões de ha) e 37% do Acre (5,6 milhões de ha) são áreas de assentamentos que precisam ser efetivamente controladas quando se pensa em combater e evitar o desmatamento na região. Por conta disso, retomo o argumento de que criar mais 5, 10 ou 15 bois é a forma mais rápida e fácil de aumentar a renda de milhares de famílias na região.

Enquanto for mais barato derrubar a floresta do que recuperar áreas degradadas, será difícil reverter essa tendência. É essencial investir na recuperação de áreas abandonadas ou que possuem baixíssima produtividade, e ainda incentivar a intensificação da pecuária para que seja possível aumentar o número de animais/ha, tornando as áreas de pastagem doadoras de terra.

É esse incremento tecnológico da pecuária, liberando terra para outras culturas e reduzindo a dependência do desmatamento, que permitirá ao Brasil se manter como o maior exportador de carne bovina e ainda expandir sua produção e exportação de forma sustentável.

Não há nada de errado com isso e, nesse sentido, não se pode concordar que é graças aos bois da Amazônia que o Brasil fomenta suas exportações. Primeiro, é essencial esclarecer que não é correto dizer que existem 71 milhões de bovinos no bioma Amazônia, pois é preciso lembrar que a parte sul do Mato Grosso e grande parte do Maranhão e do Tocantins são compostas pelo bioma cerrado. Novamente o conceito de Amazônia Legal ajuda a confundir e mascarar a realidade.

Tirando os animais dessas regiões, a pecuária no bioma Amazônia compreende 44,3 milhões de animais, ou 22% do total do Brasil (PPM-IBGE 2007). Pará, Rondônia e a parte norte do Mato Grosso são as regiões mais importantes. No entanto, é preciso ponderar que o rebanho no Pará permanece praticamente estável em 7% do rebanho nacional desde 2004, época em que o Estado não tinha áreas livres de febre aftosa e, por isso, não podia exportar. Em 2007 quando a região sul do Pará foi considerada livre da aftosa, o rebanho cresceu para quase 8%, e voltou aos 7% em 2008, evidenciando uma tendência de estabilidade.

Além disso, é preciso dizer que existem aproximadamente 1.500 abatedouros (envolvendo entrepostos de processamento e embalagem) no Brasil, dos quais aproximadamente 315 possuem Selo de Inspeção Federal, e por isso são habilitados a exportar. Nesse universo, 99 abatedouros respondem por 90% das exportações brasileiras, sendo que quatro estão no Pará, três em Rondônia, um no Acre e cinco no lado amazônico do Mato Grosso. Isso indica que existem abatedouros situados no bioma Amazônia, em áreas livres de aftosa, mas de longe se pode afirmar que são esses abatedouros que impulsionam as exportações brasileiras.

É preciso ainda salientar que existem inúmeros abatedouros clandestinos, que não seguem as exigências sanitárias e de higiene, que sonegam impostos e que inundam os açougues e mercados do Brasil com carne ilegal e de qualidade questionável. É razoável pensar que esses produtores e abatedores seguem a legislação ambiental?

Já passou da hora de acabar com as farras no bioma Amazônia. Se produtores grandes e pequenos, frigoríficos e abatedores legais e clandestinos têm culpa no cartório, o histórico problema da desorganização fundiária, o corte ilegal de madeira, a grilagem de terras e os inúmeros problemas sócio-econômicos de uma imensa região que concentra milhões de pessoas precisam ser atacados urgentemente. Enquanto os ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente, da Justiça, da Saúde, da Fazenda e do Desenvolvimento Agrário, e órgãos como o Incra e a Receita Federal não se envolverem com força nesse debate, os vetores do desmatamento continuarão a existir e, pelo andar da carruagem, a pecuária poderá pagar essa conta sozinha.

Rodrigo C. A. Lima é advogado, gerente-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).

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