Se a escravidão de um homem afeta toda a humanidade, o mesmo vale para a tortura. Algo essencial à condição humana é violentado na pessoa sob tortura e, portanto, todas as demais são atingidas. Abrir mão desse princípio ou omitir-se ante afrontas contra ele significa escancarar a porta para a barbárie e a desconstituição da idéia fundamental da natureza humana comum acima das diferenças, conflitos ou até da mais arraigada competição pela sobrevivência. A tortura é inaceitável mesmo se praticada longe de nossos olhos, em masmorras ou porões, em relações privadas, por abuso de autoridade ou ao abrigo de situações de exceção.
A condenação à tortura praticada no Brasil durante o regime militar é tida por alguns como vingança ou ódio, a impedir a superação do passado. Mas se pensarmos no futuro, é preciso reafirmar o repúdio a esta suprema forma de covardia, como constitutivo daquilo que nos une, acima de diferenças ideológicas ou quaisquer outras, e nos faz nação.
É importante levar adiante o debate ora travado em torno da ação do Ministério Público federal que, em última análise, quer a responsabilização de torturadores já identificados. A tortura é crime hediondo, não é ato político nem contingência histórica. Não lhe cabe o manto da Lei de Anistia. À justiça aqueles que, por decisão individual e intransferível, utilizaram esse instrumento torpe. Seu ajuste de contas não pode se limitar ao contencioso direto com suas vítimas. Somos todos atingidos duplamente, em nossa humanidade e em nossa cidadania. O Estado, que nos representa, deve agir tendo em conta essa dimensão.
A acusada não é a instituição militar. A maioria dos militares não se envolveu no crime de tortura. Vários deles, aliás, reagiram contra o desvirtuamento de suas funções constitucionais e o descontrole da repressão. Hoje as Forças Armadas reintegraram-se à sociedade de forma democrática e, na maioria das vezes, exemplar. Sou testemunha de seu papel nos esforços de proteção ambiental e de apoio às populações isoladas na Amazônia.
Para além dos casos mais visíveis - como o do coronel Brilhante Ustra - deve ser do maior interesse dos militares colaborar para tornar públicos os documentos daquela época, para que ela seja de fato passado e não se arraste para o futuro como trauma sempre revivido.
Do conjunto do governo, a exemplo do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, espera-se serenidade, justiça e determinação para fechar este ciclo e todos assinarmos embaixo: tortura nunca, nunca mais.
*MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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