Compartilhar responsabilidades socioambientais e iniciar uma conversa articulada para alcançar melhores resultados, contemplando os direitos territoriais dos povos indígenas da região - cujas terras encontram-se em processo de identificação – foi o objetivo do seminário de ordenamento territorial que a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e a Associação Indígena de Barcelos (Asiba) organizaram em Barcelos, em 17 e 18 de novembro último, com apoio do ISA. Entre os convidados estavam representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Brasília, São Gabriel da Cachoeira e Barcelos, da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS), da Prefeitura Municipal de Barcelos, da Fundação Vitória Amazônica (FVA), da WWF – Brasil e lideranças das comunidades indígenas da região.
A sede da Asiba, em Barcelos, recebeu os cerca de 70 participantes do seminário
Devido à sua diversidade socioambiental, o Médio Rio Negro é uma região considerada de alta prioridade para conservação ambiental pela sociedade civil e organizações não-governamentais a partir da realização do seminário de Macapá em 1999, cujos resultados foram publicados em 2001, no livro Biodiversidade na Amazônia Brasileira. Em 2007, o Ministério do Meio Ambiente atualizou as áreas prioritárias. Essa prioridade tem orientado, nos últimos anos, algumas iniciativas de fomento, criação e redefinição de Unidades de Conservação (UCs) por parte dos municípios de Santa Isabel (APA Tapuruquara) e Barcelos (APA Mariuá), do governo do Estado do Amazonas e de organizações não-governamentais.
Parcela considerável da extensão territorial de Santa Isabel e Barcelos foi incorporada ao Corredor Ecológico Central da Amazônia e, a partir daí, a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas tem sinalizado, por meio de consultas públicas, sua intenção de proceder a um Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) na região. Além disso, no início de 2009, o Parque Estadual da Serra do Aracá, receberá, depois de 18 anos de criação, um gestor responsável pela unidade. Atualmente, o parque se sobrepõe à TI Yanomami (incidindo em 79,30%) e as propostas de redefinição dos seus limites, transpondo-o para baixo, concorrem em parte com a área de uso e ocupação tradicional, reivindicadas em demarcação pelas comunidades dos rios Aracá e Demeni. (veja o mapa acima)
Desde 1998, o movimento indígena da região, com apoio da Foirn, está lutando pelo reconhecimento de seus territórios de ocupação e uso tradicional. No início de 2007, a Funai criou dois Grupos Técnicos (GTs) de Identificação de Terras Indígenas (TIs) para a região, sendo que o GT responsável pelos estudos no município de Barcelos produziu, segundo parecer da Funai, relatórios insatisfatórios em termos de conteúdo e aporte técnico. Em outubro deste ano, uma assembléia da Associação Indígena de Floresta e Padauiri(AIFP) teve como tema principal a demarcação das terras das comunidades indígenas de Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro. Saiba mais.
A programação do evento teve como perspectiva a colaboração dos cerca de 70 participantes no ordenamento territorial. Para isso, foi relatada a história do movimento indígena no Médio Rio Negro, fez-se a atualização dos trabalhos de identificação das TIs na região, e promoveu-se intenso debate acerca do processo de demarcação de TIs e tipos de UCs. No caso da Unidades de Conservação destacou-se a região do Rio Caurés, onde parte da área encontra-se em processo de identificação para demarcação de TI, e ao mesmo tempo existe proposta de criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS). Para avaliar melhor a situação, o WWF Brasil anunciou que fará uma pesquisa com os moradores das comunidades do rio, no primeiro semestre de 2009. (veja no final do texto quem participou do seminário)
Histórias dos antepassados e medo da escassez
Durante o seminário, relatos de lideranças expressaram a importância de conservar a floresta e os recursos naturais e sua ligação intrínseca com a história de seus antepassados e de influenciar questões de identidade étnica e sentimentos de pertencimento.
A Foirn vem protagonizando um processo de retomada da identidade étnica desde 1987. Na região de Santa Isabel e Barcelos o processo é mais recente e o movimento pelo reconhecimento dos direitos indígenas necessários para a continuidade e atualização de seus modos de vida está intimamente ligado à luta pela demarcação de TIs. O ordenamento territorial, ou seja, a definição de limites entre unidades espaciais de uso e proteção vai influenciar e ser influenciado pelas recomposições identitárias também em curso.
A preocupação das comunidades com a preservação de seus recursos naturais como as plantas e os peixes e o medo da escassez foi constante nos depoimentos. “Se não houver o reconhecimento e a demarcação de nossos territórios, nossa história vai ficar nos livros e só. Mas nossos filhos e netos não vão comer os peixes de desenho e palavras”, disse o tariano Clarindo Chagas.
O presidente da Cooperativa Mista Agroextrativista dos Povos Tradicionais do Médio Rio Negro (Comagept), Manoel Chaul, que nasceu na comunidade Carvoeiro e atualmente mora na cidade, afirmou que em sua terra de origem não tem mais a fartura que tinha antes. “Hoje conhecemos muitas coisas pelos livros, mas a gente vê que os novos [a juventude] não querem falar com os antigos. É preciso saber sobre o passado.”
Falta fiscalização
Os moradores das comunidades relataram e solicitaram apoio à fiscalização das atividades predatórias e invasões que continuam ocorrendo em seus territórios de uso tradicional. Os depoimentos, partilhados por quase todos os representantes das comunidades e rios, descreveram a intensidade da ação dos barcos “geleiros” - embarcações com refrigeradores para fins comerciais da pesca - , o aumento do número de barcos e operadoras de turismo de pesca esportiva nos rios e a extração ilegal de madeira, novidade na região. A extração de seixo também é contínua e é uma atividade de mineração proibida em Terras Indígenas e que não poderia continuar já que está em andamento um processo de identificação de TIs. "Nós temos sido atacados mais [...] Eu sou filha de lá daquele rio [Quiuini] e minha preocupação é essa: criei meus filhos com fartura, mas para os meus netos já está difícil”, disse dona Jarda, da Comunidade Ponta da Terra no Rio Quiuni). “Dona Jarda mora no Quiuni, eu no Aracá e nós enfrentamos os mesmos problemas
, nos preocupamos com as mesmas coisas. Os parentes querem pescar, mas não tem peixe porque o pessoal invade lá, com armas.”, disse o sr. Gilberto, da Comunidade Elesbão no Rio Aracá.
Um exercício cartográfico preliminar foi realizado no segundo dia do seminário contribuindo para organizar as demandas das comunidades em relação ao mapeamento dos pontos de invasão e práticas de atividades predatórias, bem como levantar as áreas de uso tradicional e as de importância para a conservação, de acordo com a perspectiva dos moradores das comunidades.
Ao final, o evento reforçou a certeza de que existem muitos conflitos referentes ao acesso e usos de recursos e, sobretudo, à ausência de regulamentação de atividades comerciais. Indicou-se, então, a possibilidade de realizar acordos de uso como medida provisória para garantir proteção ao modo de vida dos moradores das comunidades e o fortalecimento de suas associações.
Os povos indígenas de Santa Isabel e Barcelos reforçaram seus compromissos com o diálogo institucional e a preocupação em fortalecer as associações de base que podem atuar conjunta e diretamente para fazer frente às invasões e mantendo-se mobilizadas para garantir a conservação ambiental da região e o reconhecimento de seus direitos territoriais.
A Foirn e a Asiba indicaram à Funai de Brasília, por meio de seu representante Severo Gamenha, o antropólogo Sidnei Peres para reiniciar os trabalhos de identificação considerando seu conhecimento prévio da região, a boa relação com o movimento indígena e o compromisso com a seriedade e urgência do trabalho a ser realizado.
Entre os participantes do seminário estavam: o administrador regional da Funai em Barcelos, Severo Gamenha; o secretário do Meio Ambiente de Barcelos, Sandomar Furtado; o secretário de Terras de Barcelos, Jair Gomes Pereira; diretores da Comagept; Samuel Tararan, da WWF-Brasil; os antropólogos Sidnei Peres (Universidade Federal Fluminense - UFF), Luciene Pohnl (Consultora do WWF-Brasil), Camila Barra e Carla Dias (ambas do ISA); lideranças da Foirn, da Asiba, da Acimrn (Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro), da Acir (Associação das Comunidades Indígenas e Ribeirinhas), da Acirp (Associação das Comunidades Indígenas do Rio Preto), da Aifp (Associação Indígena de Floresta e Padauiri) e da Aibad (Associação Indígena da Bacia do Aracá e Demeni), assim como lideranças das comunidades de Cauboris, Tapera do Caurés, São Roque, Baturité, Canafé, Floresta, Ponta da Terra, São Francisco, Campina, Acariquara, Tapera do Padauiri, Acuacú, Nova Jerusalém, Bacabal, Samaúma e Elesbão, além de alunos da Escola Municipal Angelina, a convite do professor Martinho (vice presidente da Comagept).
(Envolverde/ISA)
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