quarta-feira, 12 de março de 2008

OESP - Da foice para a motosserra

Por Marcos Sá Corrêa
Artigo

Cada um tem o direito de acreditar no que quiser sobre o movimento dos sem-terra. Pode achar até que o MST está aí para fazer reforma agrária. Mas não dá para levá-lo a sério quando levanta foices contra plantações de eucalipto, canaviais transgênicos e outros espantalhos do meio ambiente, escolhidos como pragas agrícolas nesta safra 2008 de atentados.

Disso, na melhor das hipóteses, o MST não entende. Se entendesse mesmo, não tocaria num assunto que só serve para incriminá-lo. O braço do movimento, cada vez mais cheio de dedos como a Via Campesina, deixou marcas nas frentes brasileiras de desmatamento para falar dos pecados alheios. Não faltam toras de assentamentos, por exemplo, no último recorde de devastação ilegal da Amazônia.

Mas isso o País está cansado de saber. Só quem não sabe é o governo. No fim dos anos 90, uma comissão parlamentar que avaliava os estragos produzidos na região por serrarias asiáticas, tropeçou na evidência de que 16 milhões de hectares da floresta haviam caído, nas últimas três décadas, em nome da reforma agrária. Era notória “a interface entre os projetos de assentamento e a extração de madeira”. E também faz tempo que Adalberto Veríssimo, do Imazon, chamou de “desastroso” o “histórico dos projetos de desenvolvimento sustentado na Amazônia”.

Nada disso impediu, evidentemente, que o engenheiro gaúcho Guilherme Cassel assumisse em 2006 o Ministério do Desenvolvimento Agrário dizendo: “A máquina está montada, só falta agora colocar mais lenha na fogueira.” A fogueira está lá para todo mundo ver. Mas, para Cassel, continua a ser “obrigação do Estado assentar gente no Norte e em terras públicas” porque, à luz do fósforo oficial, “o assentamento combate o desmatamento”.

No ano passado, o biólogo Fábio Olmos fez o inventário desse programa de colonização “extrativista” e “socioambiental”, no jargão de Brasília. Segundo Olmos, os assentamentos viraram rivais do agronegócio na “destruição de hábitats no País, com a agravante de serem financiados pelo contribuinte”. Pudera. No Brasil, as últimas fronteiras que se poderiam chamar de colonizáveis estão na floresta amazônica, nos saldos da mata atlântica, nas escarpas mais ínvias da Serra do Mar e no que sobra do Pantanal mato-grossense. São, todos eles, nomeados um a um, lugares que o artigo 225 na Constituição declara “patrimônio nacional”, a ser ocupado com cautela.

Mas é neles, de preferência, que o Incra desova seus assentados, geralmente sem dar a mínima a quesitos legais, como relatórios de impacto ou licenças do Ibama. O Incra é torto até no nome. O C de sua sigla vem de colonização, coisa que, pela Constituição, ele deveria ter deixado de fazer há 20 anos.

A sopa de letras bóia no anacronismo burocrático. Sem esse C, apesar do superfaturamento de fazendas e do permanente motim de seus quadros contra as leis vigentes, o Incra talvez fizesse reforma agrária de vez em quando, sob pena de fechar as portas por caduquice e desuso. Com o C, virou pau para toda obra. Morde terras devolutas, privatiza florestas, sitia reservas e inventa quilombos. Faz qualquer coisa para não fazer reforma agrária. E para isso conta com o apoio tácito do MST. O movimento dos sem-terra denuncia tudo com muito barulho. Mas abafa em discussões internas seu próprio desvio oficioso da foice e da enxada para a motosserra.

É jornalista e editor do site O Eco

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