domingo, 26 de dezembro de 2010

Ikpeng, os 'exilados' do parque do Xingu

Etnia contactada pelos irmãos Villas Bôas em 1964 arma retorno à chamada terra originária , a sudoeste da reserva indígena, em MT

Roberto Almeida, de O Estado de S.Paulo

SÃO PAULO - O cacique Araka não larga o arco e as flechas quando anda pela aldeia Moygu. Para ele, líder espiritual dos Ikpeng, etnia "exilada" na área central do Parque Indígena do Xingu, a guerra em busca do chamado território originário, às margens do rio Jatobá, em Mato Grosso, está apenas começando.

A área pretendida pelo grupo fica a sudoeste e fora dos 2,7 milhões de hectares do Parque do Xingu. Os Ikpeng querem cerca de 270 mil hectares onde a soja já avançou. Segundo imagens de satélite, 30% do território estão ocupados por lavouras do grão. A batalha judicial com agricultores e fazendeiros é iminente.

"Eu preciso retornar lá. Eu quero morrer naquele lugar. Eu quero ser enterrado no túmulo da minha família. Eu não quero morrer aqui. Eu quero morrer lá", discursou o cacique em um sábado ensolarado, sob tradução do jovem líder da associação indígena local, Kumaré Ikpeng.

A atitude beligerante de Araka é a essência de seu povo - o único que pretende deixar o Xingu em seus quase 50 anos de criação. Ikpeng quer dizer marimbondo na língua karib, que todo o grupo, hoje com 400 pessoas, fala. Marimbondo porque ataca em bando, gostam de dizer. Em bando para guerrear.

Antes de serem contactados, no início da década de 1960, os Ikpeng travaram guerra com os Waurá, do Alto Xingu. Pintados, com bordunas e arco e flecha, roubaram duas mulheres da aldeia rival sem saber que lá o não-índio já havia chegado com armas de fogo.

A retaliação dos Waurá, dias depois, foi à bala. Morreram pelo menos 12 índios Ikpeng. Restaram cerca de 50, muitos doentes, porque além dos projéteis os Waurá semearam a gripe.

Poucos anos depois, em outubro de 1964, os irmãos Cláudio e Orlando Villas Bôas aterrissaram na aldeia Ikpeng em um monomotor. Antes, lançaram rapaduras e revistas para amenizar o contato. O encontro foi um choque para o grupo, que ainda estava na área do rio Jatobá. Mas, ao mesmo tempo, sua redenção.

Os Villas Bôas fizeram rapidamente o diagnóstico: ou levariam os Ikpeng para dentro do parque, para salvá-los, ou a morte do grupo seria inevitável. Em 1967, todos embarcaram em uma balsa, que navegou o Rio Xingu por cinco dias até chegar ao destino final: o posto Leonardo Villas Bôas, no Alto Xingu, já dentro da terra indígena.

A recepção foi conturbada. As etnias atendidas pelo posto, sem exceção, nutriam ódio pelos Ikpeng por guerras anteriores. A chamada "pax xinguana", de entendimento entre os povos, não incluía os recém-chegados.

Araka estava entre esses "exilados". Suas memórias carregam um sentimento de alegria por ter sobrevivido e frustração por ter deixado o que considera sua terra originária. Ao mesmo tempo, é ambivalente em relação aos Villas Bôas. Demonstra gratidão e respeito, mas também uma dose de melancolia por conta do Jatobá.

Convencimento. Em 2002, Araka acompanhou a primeira expedição que levou os Ikpeng ao rio Jatobá, com apoio do Ministério do Meio Ambiente. Foi o retorno à chamada terra originária, depois de 35 anos.

"Andamos, vimos uma casinha bem na beira, de madeira, e caminhamos até encontrar o local onde era aldeia. Lá me deu uma tristeza muito forte, porque vi o túmulo da minha irmã", relatou o cacique.

Apelos como esse, resultado da expedição, mudaram a opinião dos jovens da etnia. Antes satisfeitos com a estrutura da aldeia Moygu - a saúde é comandada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com sucesso há 45 anos -, agora eles veem a ida para o Jatobá como inescapável.

Segundo membros mais jovens do grupo Ikpeng, as expedições mostraram que as terras ainda não estavam tão devastadas quanto imaginavam. E que poderiam se beneficiar de um complexo de lagos ainda conservados, considerados sagrados.

"O bom é que eles (os irmãos Villas Bôas) trouxeram a gente e a gente vive em um local demarcado. O Jatobá está lá, é a nossa terra, mas por enquanto os fazendeiros estão lá tomando conta. A gente não sabe o que eles estão fazendo lá", afirmou Furigá Ikpeng, uma das jovens lideranças da aldeia, que participou de todas as expedições ao Jatobá.

Segundo Furigá, a aldeia está disposta a deixar para trás a estrutura da Funai. O Posto Indígena Pavuru concentra pista de pouso, área de alimentação e postos de saúde. Os índios esperam reconstruir as benfeitorias no Jatobá.

"Se a gente conseguir o território de volta, o que for desmatado a gente vai trabalhar de forma sustentável", disse Napiku Ikpeng, professor na aldeia e porta-voz dos Ikpeng na questão territorial. "Com soja, por enquanto, a gente não quer trabalhar."

Nas cidades vizinhas ao Xingu, é notória a tentativa dos Ikpeng de retornar ao Jatobá. Prefeitos têm conhecimento da iniciativa em virtude das expedições. Indígenas da aldeia foram barrado por fazendeiros quando tentavam fazer uma incursão por estradas locais.


Área reivindicada está em estudo pela Funai

Região do rio Jatobá não tem laudo antropológico, mas base para retomada está em suposta transferência compelida para o Xingu

Roberto Almeida, de O Estado de S.Paulo

SÃO PAULO - A investida dos Ikpeng na área do rio Jatobá esbarra na falta de um laudo antropológico definitivo para embasar a demarcação. O processo se arrasta, via portaria 1.440 da Funai, desde 2006. O Grupo de Trabalho de Identificação em andamento não entregou a documentação necessária. Não há levantamento fundiário da região reivindicada.

Enquanto isso, expedições à área do Jatobá tiveram apoio do Ministério do Meio Ambiente, via Programa de Apoio ao Agro-Extrativismo da Amazônia. A primeira - que Araka Ikpeng acompanhou - foi realizada em setembro de 2002. O projeto foi acompanhado pelo engenheiro florestal Marcus Schmidt, hoje assessor técnico da Associação Indígena Moygu Comunidade Ikpeng.

A partir das explorações, David Rodgers, antropólogo-coordenador do grupo de trabalho, realizou um laudo preliminar ao qual o Estado teve acesso. A base para a retomada do território, segundo o texto, são elementos de flora e fauna só encontrados na região.

Segundo Rodgers, há quatro itens considerados essenciais para a cultura Ikpeng. O morit, uma espécie de taquara usada para cortar cabelo em cerimônias; o ragop, uma planta usada como medicamento; o próprio ikpeng, ou marimbondo, usado em rituais de iniciação; e o rapiu, uma concha de caramujo usada para adereços.

O antropólogo considera ainda "conceitos cosmológicos" dos Ikpeng para a retomada da área. Alega, em seu material, que durante a permanência do grupo no Jatobá ocorreram diversos funerais, além da "disposição da placenta e do cordão umbilical" - elementos considerados fundamentais para a noção de território dos indígenas.

O argumento jurídico e fundiário encontrado por Rodgers é a transferência "compelida" dos Ikpeng para o Parque do Xingu. "As autoridades públicas foram responsáveis por falhar na proteção dos Ikpeng, enquanto população indígena, das invasões ao seu território e, consequentemente, com relação à possibilidade de danos físicos adicionais infligidos pela população não-indígena que avançava na região", afirma, no documento.

De acordo com a Funai, o relatório definitivo sobre o Jatobá, que está em elaboração, ainda terá de passar por análise de "técnicos responsáveis". Somente assim uma eventual delimitação da área poderá ser publicada no Diário Oficial da União.

Fôlego

Um processo de retomada teve recente sucesso para os índios Xavante, também de Mato Grosso. O caso dá fôlego ao intuito dos Ikpeng. Em decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), no último dia 8, eles reassumiram a terra Maraiwatsede, antes ocupada por posseiros.

Segundo a decisão do TRF1, a etnia Xavante "foi despojada da posse de suas terras na década de 60, a partir do momento em que o Estado de Mato Grosso passou a emitir título de propriedade a não índios".

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