Por Cristiane Prizibisczki
O governo encerrou na última semana as audiências públicas para pavimentação da BR-319, que ligará Porto Velho (RO) a Manaus (AM). Os encontros foram realizados com um tom pra lá de desenvolvimentista, mesmo depois de quase terem sido anulados pelo Ministério Público Federal, por falta de divulgação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) para a obra. Mas os desdobramentos que levaram à iminente anulação dos debates é apenas um dos muitos atos contra um empreendimento bastante controverso. Organizações não-governamentais lançaram novos questionamentos (veja aqui) sobre a legitimidade das audiências e foi divulgado um novo estudo sobre a inviabilidade do projeto.
A pavimentação da rodovia vem sendo discutida há anos, mas a conclusão do EIA/Rima e a realização das audiências confirmam que, se depender do governo, ela começa em breve. Incluída no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), a obra prevê a pavimentação de um trecho de 405 quilômetros. Para isso, governo diz já ter garantido cerca de 1 bilhão de reais. A previsão é que até o final de 2010 a obra seja concluída.
Durante as quatro audiências públicas, realizadas em Porto Velho (RO) e em três cidades do Amazonas (Humaitá, Careiro e Manaus) entre os dias 22 e 28 de abril, o governo usou seu tempo apenas para tocar nos pontos supostamente positivos do projeto. Entre os principais argumentos de defesa, destacados pelo superintende regional do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit) para Rondônia e Acre, José Ribamar de Oliveira, estão a retirada do “isolamento” de 20% do território nacional, melhora na qualidade de vida das comunidades próximas à estrada, já que elas teriam acesso facilitado a serviços essenciais, como nas áreas de saúde e educação, fortalecimento econômico e turístico da região e escoamento da produção agrícola.
Mas segundo Yara Camargo, coordenadora de Políticas Públicas da Fundação Vitória Amazônica (FVA), durante a audiência de Manaus, por exemplo, não foram apresentadas nem as alternativas à pavimentação da rodovia, como determina a lei. “A discussão foi mais sobre a BR mesmo, o Dnit só falou de outras propostas quando foi questionado. E falou muito rapidamente”, disse.
As entidades que firmaram a nova nota de questionamento, entre elas as não-governamentais Greenpeace, Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), além de FVA, estudam entrar com um pedido de ação civil junto ao Ministério Público Federal, para anular as audiências.
Alertas antecipados
A consultoria Conservação Estratégica, que analisa a viabilidade ambiental de obras de infra-estrutura do país, finalizou, na última semana, seu estudo sobre o custo-benefício do projeto de recuperação da BR-319. Mas resultados preliminares (veja aqui) já apontavam para a total inviabilidade da obra.
Segundo Leonardo Fleck, principal autor do trabalho, foram considerados dois cenários para a análise, com e sem a incorporação de custos ambientais. No primeiro cenário, no qual os custos ambientais ficam de fora, a obra se mostra inviável, com prejuízo de 354 milhões de reais nos próximos 25 anos (relação entre custos e benefícios gerados).
Quando considerados os custos ambientais, o rombo no uso de dinheiro público é ainda maior. De acordo com a análise, ao somar os custos gerados pelo desmatamento na região entre os rios Madeira e Purus, a emissão de CO2, perda de biodiversidade e diminuição na qualidade de vida da população do entorno, o prejuízo final será de nada menos que 2,2 bilhões de reais. Quando incluídas ações de minimização dos danos, como criação de áreas protegidas, esse prejuízo cai, mas continua negativo em 900 milhões de reais. “Importante salientar que nem quando considerada somente a viabilidade econômica a obra se mostra positiva”, defende Fleck. Segundo ele, o documento foi apresentado a representantes do governo federal, mas eles “não mostraram interesse”.
Em 2006, o pesquisador Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), já alertava para o impacto da rodovia na Amazônia (veja aqui). Seus estudos indicam que o transporte por cabotagem – navegação entre portos do interior do país por via marítima ou fluvial – é até 50% mais barato que o realizado por rodovias. O problema é que este tipo de transporte é praticamente inexistente, por falta de estrutura nos portos brasileiros. “Evidentemente, o EIA/Rima da rodovia deveria considerar a opção de construir um novo porto e transportar esse frete por cabotagem, o que seria mais barato e muito menos danoso ao meio ambiente do que a opção rodoviária”, diz um artigo do pesquisador, apresentado durante a IV Feira Internacional da Amazônia.
O que podemos esperar
Historicamente, 75% do desmatamento da região amazônica ocorreu ao longo de rodovias pavimentadas. Assim foi com a Belém-Brasilia (BR-010), Cuiabá-Porto Velho (BR-364) e no trecho matogrossense da Cuiabá-Santarém (BR-163). E o impacto trazido pela abertura e pavimentação de estradas extrapola os desmatamentos em si.
Mario Cohn-Haft, coordenador de Pesquisas em Ecologia do Inpa lembra que o asfaltamento do trecho central da rodovia (já há asfalto nos extremos próximos às ) significa viabilizar a estrada inteira como meio de circulação de veículos, pessoas, organismos vivos e culturas agrícolas, permitindo o fluxo destes elementos para dentro de uma porção bem preservada da Amazônia.
Com isso, a introdução de espécies competidoras, invasoras ou parasitas, é inevitável, o que irá alterar fauna e flora nativas, podendo tornar o ambiente crítico para diversas espécies. “A introdução de espécies exóticas para a região é o impacto mais difícil de evitar e, uma vez acontecido, de reverter”, diz o pesquisador em seu diagnóstico de aves da região da BR-319 (veja aqui). O documento integrou o EIA/Rima do projeto.
Na história da ornitologia há vários exemplos de introduções desastrosas, como o Pardal nas Américas e mais recentemente do pássaro Chopim (Molothrus Bonariensis) na Amazônia. Segundo Cohn-Haft, pesquisadores notaram a redução drástica de populações de uma ave comum do bioma, o pássaro Pipira (Ramphocelus carbo), associada à expansão das populações e casos de parasitismo do Chopim ao redor de Manaus.
Além disso, a estrada deve provocar fragmentação da floresta e de populações de animais e plantas, interrompendo o fluxo gênico entre os lados opostos da rodovia, aumentará o número de atropelamentos de animais e descaracterizará ambientes naturais na área toda, podendo levar a extinções locais ou totais de espécies.
Ações minimizadoras
A região compreendida entre os rios Madeira e Purus é uma das mais ricas em biodiversidade da Amazônia por abrigar grande variedade de ambientes. Ali, é possível encontrar florestas de terra firme, com vários portes e composições, florestas alagáveis por água barrenta ou águas pretas e cristalinas, campos naturais alagáveis, cerrado e tabocais, os bambus típicos da Amazônia. Os dois complexos de campos naturais, um ao norte, na bacia dos rios Matupiri e Rio Preto do Igapó-açu, e outro ao sul na região de Humaitá-Puciari, por si só já justificariam ações de preservação, por serem ambientes com alto potencial para ocorrência de novas espécies.
Em toda esta região entre o Madeira e o Purus, ocorrem mais de 740 espécies de aves, o que representa cerca de 40% da avifauna brasileira e aproximadamente 60% da Amazônica. Quatro delas já são consideradas sob ameaça de extinção.
Segundo discurso do governo, a integridade dos ambientes naturais será mantida com 28 unidades de conservação já existentes ou que serão criadas ao longo da rodovia, formando uma “blindagem verde”. O otimismo é tanto que, durante a segunda audiência pública, realizada em Porto Velho (RO), o diretor de Planejamento e Pesquisa do Dnit, Miguel de Souza, chegou a afirmar que a obra não causará grande impacto ambiental.
No entanto, para que toda biodiversidade seja realmente garantida, não basta só gogó. Em sua avaliação para o EIA/Rima, Mario Cohn-Haft afirmou a necessidade de monitoramento constante sobre animais atropelados e sugeriu até a criação de um “Instituto Nacional de Estudos sobre a Introdução de Espécies Exóticas na Amazônia”, “considerando a imprevisibilidade da forma em que introduções podem atingir populações naturais, a falta de mão de obra qualificada, a total falta de estudos e precedentes para estimar o tamanho do problema”, entre outras ações.
Cohn-Haft, Leonardo Fleck, Philip Fearnside e várias entidades ambientalistas desaconselharam a execução da obra. Mas, a julgar pelos ânimos governistas durante as audiências públicas, o asfalto deve levar mais destruição a uma região da Amazônia.
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