sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O homem contra a floresta. Entrevista especial com Braulio Dias

Uma coisa que Braulio Dias deixa claro na entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone, foi que 100% das queimadas realizadas em épocas de secas são causadas pelo homem. "Há razões científicas e ecológicas para que toleremos incêndios causados por raios como parte de fenômenos naturais de ecossistemas abertos, como o cerrado e o pampa e não em vegetações florestais. Praticamente, todos os incêndios que ocorrem no país são causados pelo homem, principalmente ligados a práticas agrícolas e agropecuárias para promoção de renovação de pasto ou, então, para colheita da cana-de-açúcar", explicou.

Braulio Dias é gerente de conservação da biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente. Biólogo e doutor em zoologia pela Universidade de Edimburgo (Escócia), ele atua também como professor adjunto do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília e pesquisador sênior da Diretoria de Geociências do IBGE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que características do clima deste ano fizeram com que o número de queimadas no Brasil aumentasse em relação à média dos últimos anos?

Braulio Dias - O que temos são os dados de monitoramento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que medem os chamados pontos de calor. Esses dados de monitoramento por satélite não estimam a área total queimada, mas o número de quadrículas no território nacional que têm incêndios ou queimadas. O que se sabe é que esse ano houve um recrudescimento muito grande da ocorrência de incêndios e queimadas em todo o país e, claro, isso está extremamente associado ao clima seco que estamos vivendo. A vegetação fica muito seca, tem muita biomassa seca para queimar e o risco de incêndio aumenta muito. Qualquer descuido, qualquer atividade que possa iniciar um incêndio, como uma queima de lixo, tem grande possibilidade de sair do controle. Os dados do Inpe mostram que a quantidade de incêndios esse ano está muito alta e, portanto, com impacto maior.

Se compararmos os dados do Inpe desde o início da década até o ano passado, houve uma diminuição quase contínua da média de queimadas no país. Em parte, isso ocorre devido ao trabalho de prevenção e adoção de práticas alternativas para reduzir o fogo na agricultura ou na queima de lixo. Temos que reconhecer também que ocorreu uma sequência de anos mais úmidos. Isso também não colocou o país numa situação de risco em relação a incêndios. Esse ano está extremamente seco em todo o país, inclusive, na Amazônia ocidental, no estado do Amazonas, os rios estão secando. Aqui no Planalto Central, onde estou, por exemplo, em vários dias dessa estação seca, a umidade relativa do ar esteve abaixo de 10%. Isso é um clima desértico e aumenta muito o risco de incêndios.

IHU On-Line - De que forma os incêndios, desmatamentos e gases poluentes aceleram o processo de mudanças na vegetação da Amazônia?


Braulio Dias - Não só na Amazônia, mas em todo o Brasil com certeza. O fogo tem impactos diretos e indiretos. O impacto direto atua sobre a vegetação, destruindo indivíduos inteiros ou então parte da copa de vegetais. Isso causa uma alteração imediata da vegetação. Há uma redução da biomassa a curto prazo que pode ser potencialmente recuperada se a vegetação não for afetada por queimadas nos próximos anos. Isso causa aumento da mortalidade, tanto de plantas quanto de animais. Esses incêndios e queimadas afetam o balanço entre as zonas de transição de contatos entre a vegetação.

Quando você tem um contato entre um campo e uma floresta, o incêndio favorece a vegetação campestre em detrimento da vegetação florestal. A área ocupada por vegetação florestal regride localmente e as áreas campestres se expandem. Isso acontece tanto no aí no Rio Grande do Sul quanto aqui no Planalto Central e em áreas de transição entre cerrado e floresta amazônica lá na região norte. Agora, indiretamente, tem um impacto sobre o clima, porque o incêndio provoca o aumento da emissão de gases de efeito estufa e isso vai aumentar o aquecimento global. O clima fica mais quente e amplia a probabilidade de eventos extremos como essa seca que estamos vivendo agora. Essa própria seca, em parte, decorre desse fenômeno de mudança do clima. Sejam secas, com calores muito intensos ou com cheias muito fortes.

IHU On-Line - O aumento das queimadas neste ano pode ter relação com o aquecimento global?

Braulio Dias - Podemos dizer que tem uma relação sim e é uma relação de duas vias. O aumento do aquecimento global modifica o clima no mundo inteiro. Localmente, pode aumentar as temperaturas, reduzir chuvas e aumentar o risco de incêndio numa série de regiões. Nessas últimas semanas, tivemos muitas notícias de grandes incêndios, por exemplo, na Rússia em áreas que normalmente não queimavam e agora estão queimando bastante. Grandes incêndios estão acontecendo em Portugal, na Espanha e em toda aquela região do Mediterrâneo. Então, com certeza, essa mudança de clima pode aumentar a ocorrência de incêndios e, como eu falei antes, o aumento da ocorrência de incêndios aumenta a emissão de gases de efeito estufa, o que retroalimenta o processo de aquecimento global.

IHU On-Line - Parte de áreas queimadas da Amazônia estão virando pasto, segundo pesquisas. O que o Ministério do Meio Ambiente tem feito para que a pecuária não avance ainda mais sobre a floresta?

Braulio Dias - A pecuária é o principal fator de pressão sobre a floresta Amazônica, é a principal atividade econômica que induz o desmatamento nesta região. O governo, em 2004, lançou uma iniciativa, que é o programa de combate ao desmatamento na floresta Amazônica. Esse é um programa que articula ações em vários ministérios. Graças a esse esforço articulado de diferentes setores do governo, o desmatamento da Amazônia vem reduzindo consistentemente ano após ano. As taxas eram muito elevadas até 2004, a partir de 2005 começou a reduzir e, até 2009, a redução acumulada foi da ordem de 75%. Isso é muito significativo. Ontem, o presidente Lula assinou dois decretos, especificamente para fazer a mesma coisa no Bioma Cerrado. Foi criado formalmente um programa nacional de combate ao desmatamento e aos incêndios e queimadas no Bioma Cerrado.

É uma articulação de vários ministérios sob a coordenação da Casa Civil da Presidência da República, com o uso de vários instrumentos de políticas de diferentes ministérios, inclusive instrumentos econômicos adotados pela comissão monetária nacional, com restrição de financiamentos para atividades como a pecuária, que pode estar induzindo o desmatamento e queimadas. Essa é uma ação importante e a gente espera que essa iniciativa no Cerrado tenha o mesmo sucesso que vem sendo alcançado lá na Amazônia. Deixe-me fazer, aqui, um parêntese para reconhecer também iniciativas do próprio setor privado, pois não são só os governos que estão conseguindo fazer ações mais efetivas de combate ao desmatamento e às queimadas. Mas o próprio setor privado, talvez pressionado pelos consumidores, pelos mercados, estão adotando cada vez mais práticas sustentáveis.

Um exemplo concreto na Amazônia, já há 3 ou 4 anos, as indústrias da soja, que trabalham com farelo e óleo de soja, adotaram voluntariamente um compromisso de não comprar soja de produtores que estejam promovendo o desmatamento. Isso tem sido monitorado por satélite e vem sendo cumprido. Nesse ano agora, mais esse ano, existe uma mesa redonda internacional que promove a soja, chamada soja responsável, que reúne produtores, especialistas da academia e de ONGs. Eles adotaram um conjunto de compromissos voluntários de práticas para garantir a maior sustentabilidade na produção da soja, inclusive com vários critérios para a proteção de biodiversidade. Em dezembro do ano passado, em São Paulo, grandes frigoríficos e supermercados brasileiros adotaram voluntariamente o compromisso da carne sustentável. A ideia é que a pecuária brasileira incorpore critérios de sustentabilidade para que seu produto seja comprado pelo mercado.

IHU On-Line - Podemos dizer que é a ação do homem que desencadeia essa situação alarmante em relação às queimadas?


Braulio Dias - Com certeza. Existem incêndios de causas naturais. Aqui no Brasil ocorrem incêndios causados por raios, mas são relativamente raros e eles só ocorrem no período das chuvas. Então, todos os incêndios da época da seca, ou seja, 100% deles são causados pelo homem. Há razões científicas e ecológicas para que toleremos incêndios causados por raios como parte de fenômenos naturais de ecossistemas abertos, como o cerrado e o pampa e não em vegetações florestais. Praticamente, todos os incêndios que ocorrem no país são causados pelo homem, principalmente ligadas a práticas agrícolas e agropecuárias para promoção de renovação de pasto ou então para colheita da cana-de-açúcar. Além disso, o fogo é feito para limpar uma área ou para controlar o lixo no entorno da cidade.

IHU On-Line - O Brasil vive o problema das queimadas há muitos anos. Que tipo de ações poderiam ser adotadas como possíveis soluções?

Braulio Dias - Isso é bastante complexo. Não se combate incêndio via decreto. Você tem que induzir e promover capacitação, políticas públicas e crédito que estimulem práticas alternativas. O problema é que o fogo é um método barato. É preciso capacitar melhor os produtores e pessoas que vivem em áreas rurais e periferias urbanas, onde ocorrem os maiores problemas, sobre alternativas. É possível que a legislação também promova controle sobre queimadas provocadas pelo homem. Mas isso exige uma série de cuidados para que realizem aceiros antes de qualquer queimada para se adotar critérios, como horário e épocas do ano.

Porém, eu não vejo a possibilidade de, a curto prazo, a gente deixar de conviver com o fogo. Mas é preciso fazer um trabalho sistemático para que possamos enfrentar essa questão tendo em vista, progressivamente, reduzir a incidência sobre o fogo. Dados do Inpe mostram que, nos últimos anos, felizmente, no Brasil, tem havido uma redução contínua das queimadas. Infelizmente, neste ano, houve o recrudescimento em função da situação climática excepcionalmente seca. Esperamos que, a partir das novas medidas adotadas, inclusive um plano aprovado na última semana pelo presidente da República, de prevenção e controle do desmatamento e queimadas no Cerrado, ajude na redução desse problema.

(Envolverde/IHU - Instituto Humanitas Unisinos)

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