Banco empresta bilhões para grandes projetos e empresas com potenciais impactos socioambientais, mas investimentos em práticas sustentáveis ainda estão na casa dos milhões. Segundo organizações da sociedade civil, não há transparência sobre critérios usados para financiamentos
Oswaldo Braga de Souza
Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) finalizada em outubro reforça que, apesar de cumprir a lei, a política de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não conseguiu impedir que grandes frigoríficos financiados por ele comprassem carne de fornecedores envolvidos com desmatamento ilegal e trabalho escravo na Amazônia. A informação já tinha vindo a público no ano passado, na pesquisa "A Farra do Boi na Amazônia", do Greenpeace. O TCU menciona o documento como uma de suas fontes.
O relatório do TCU lembra que a legislação federal exige a licença ambiental do empreendimento financiado – no caso, as unidades de processamento de carne – mas não uma avaliação dos impactos ambientais ao longo da cadeia produtiva. O texto aponta “incoerências” entre os programas de combate ao desmatamento e de fomento às atividades agropecuárias do BNDES, Banco do Brasil e Banco da Amazônia (Basa). E acusa falha da Casa Civil na coordenação das duas políticas: grande parte dos empréstimos feitos pelo BNDES aos frigoríficos, por exemplo, atendeu o plano do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) de consolidar o Brasil como o maior exportador de carne do mundo, mas sem nenhuma consulta ao Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Nos últimos quatro anos, o banco emprestou R$ 3,4 bilhões ao setor agropecuário da Amazônia Legal. Desde 2007, foram desembolsados R$ 18,5 bilhões para os quatro maiores frigoríficos do País – JBS, Marfrig, Independência e Brasil Foods (fusão entre Sadia e Perdigão), com atividades apenas parcialmente localizadas na região. Juntas, essas empresas são responsáveis por 38% do abate amazônico de bois (registrado em órgãos federais).
O TCU lembra que os preços da soja e da carne e a disponibilidade de crédito subsidiado têm grande influência nas taxas de desmatamento. A auditoria afirma que “investimentos de grande volume com financiamento público a atividades que são vetores do desmatamento, como é o caso da pecuária, podem estimular o avanço da fronteira agropecuária em direção à floresta.” Estimativas reconhecidas pelo governo indicam que cerca de 80% dos 74 milhões de hectares já desmatados no bioma amazônico são ocupados por pastagens.
De acordo com o relatório, a política oficial de financiamento não tem sido suficiente para estimular práticas econômicas sustentáveis e a recuperação de áreas degradadas. As linhas de crédito para reflorestamento têm baixa execução e a maioria dos empréstimos é destinada às culturas tradicionais e à pecuária de baixa produtividade. A auditoria, no entanto, considera que a responsabilidade pela situação não é dos bancos oficiais, que apenas colocam em prática diretrizes definidas pelos ministérios, e que a situação também decorre da falta de programas de assistência técnica e extensão rural.
Grandes empresas e projetos
O BNDES vem sendo criticado por organizações da sociedade civil pela falta de transparência em relação aos seus critérios e diretrizes de investimento. “Com base no princípio do sigilo bancário, o banco tem se negado a informar seus critérios de análise de risco”, diz Gabriel Strautman, secretário executivo da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais. Ele avalia que o banco colocou em prática a aposta do governo Lula na exploração e exportação de grãos, carne, minério e celulose. Por isso, a Amazônia tornou-se um de seus alvos preferenciais.
Os recursos desembolsados pelo BNDES na região em grandes projetos e empresas – como hidrelétricas, mineradoras e agroindústrias – somam pelo menos R$ 24,3 bilhões, nos últimos quatro anos. Enquanto isso, os investimentos de cunho ambiental não passam de R$ 280 milhões (excluído o setor de “energias alternativas”) no período. As informações são da assessoria do banco.
O resultado total de investimentos na região em grandes empreendimentos, nos frigoríficos e na produção agropecuária – R$ 46,2 bilhões – equivale a 13% dos desembolsos feitos pelo BNDES e a nove vezes os gastos do MMA, entre 2006 e 2009. Além dos gigantes do setor da carne, a Vale, a Petrobrás, a Alcoa e grandes empreiteiras estão entre os beneficiados pelo banco, conforme levantamento do Instituto Brasileiro de Análises Sociais Econômicas (Ibase).
Além do potencial estímulo ao desmatamento, essas empresas são consideradas responsáveis por conflitos fundiários e migrações descontroladas, entre outros efeitos negativos que atingem principalmente pequenos agricultores, populações indígenas e tradicionais. “O BNDES não tem uma política de salvaguardas dos direitos de populações diante dos impactos de seus financiamentos”, critica Strautman.
“Se por um lado não se pode afirmar que todos esses investimentos promovem o desmatamento obrigatoriamente, por outro não se tem informações sobre como os potenciais impactos socioambientais foram considerados na concessão dos empréstimos” afirma Adriana Ramos, secretaria executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA). Ela lembra que as políticas de crédito do BNDES não preveem o monitoramento desses impactos nem consultas às populações possivelmente afetadas.
Política ambiental
Por meio de sua assessoria, o BNDES nega que esteja financiando o desmatamento, mesmo indiretamente, apesar de admitir que parte da responsabilidade sobre o problema é das instituições financeiras. O banco apresenta em seu site uma política ambiental que garantiria a rejeição de apoio a atividades insustentáveis.
Embora afirme que sua avaliação ambiental de projetos vai além dos aspectos legais e formais, seu foco recai na exigência e análise de licenças e estudos de impactos já requeridos pela legislação. Questionada sobre avaliações próprias dos impactos dos projetos financiados, a assessoria do BNDES respondeu que, além de exigir esses estudos, ele também considera pesquisas feitas por ONGs e universidades.
“O banco diz que o responsável pelo licenciamento ambiental é o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. E se uma atividade está adequada para o Ibama, está adequada para o banco. Mas sabemos que os processos de licenciamento têm sofrido falhas e pressões políticas”, aponta Strautman.
O site do BNDES diz que, de acordo com a análise ambiental dos projetos, ele pode realizar estudos complementares, solicitar informações adicionais, recomendar a reformulação do projeto e a inclusão de condicionantes socioambientais, ofertar recursos para medidas mitigadoras e, “em casos extremos”, rejeitar o financiamento.
“No caso da hidrelétrica de Belo Monte, cuja licença ambiental é furada, o banco já tinha anunciado que iria liberar o maior financiamento de sua história antes mesmo de analisar o projeto. Então, pelo menos até agora, esse processo criterioso apontado por eles é pura ficção”, avalia Raul Silva Telles do Valle, coordenador adjunto do Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS) do ISA. Ele lembra que a instituição financeira recebeu uma notificação extrajudicial dos movimentos sociais de Altamira (PA), onde a usina será construída, sobre a fragilidade do licenciamento da obra, mas todos os procedimentos para o financiamento estão seguindo normalmente (saiba mais). O BNDES poderá aportar até R$ 13,5 bilhões em Belo Monte.
Fornecedores “ficha limpa”
De acordo com o texto publicado na internet, o apoio a projetos agropecuários e de silvicultura que promovam a abertura de novas áreas está condicionado ao cumprimento do Zoneamento Ecológico-econômico (ZEE). Em 2008, o BNDES estabeleceu condicionantes socioambientais para apoio financeiro aos frigoríficos via participação acionária. Em 2009, elas foram ampliadas para empréstimos. O objetivo seria de “combinar o atendimento à crescente demanda por carne bovina com um modelo de produção que garanta a preservação dos recursos naturais e o respeito aos trabalhadores e comunidades, sendo a fixação de salvaguardas socioambientais uma maneira de estimular a modernização e o ganho de competitividade em bases sustentáveis.”
Além da licença ambiental, passou a ser exigido das empresas que postulam empréstimos um sistema de compras que pretende impedir negócios com quem tiver sido condenado por desmatamento ilegal, trabalho infantil ou escravo, invasão de Terra Indígena ou grilagem. Os frigoríficos passaram a ter de manter um cadastro de fornecedores atualizado com informações que comprovem o cumprimento da legislação, como número de licença ambiental e ponto georreferenciado.
A ideia surgiu a partir do acordo fechado, no final de 2009, entre o Ministério Público Federal no Pará e os grandes frigoríficos, em que estes se comprometeram a excluir de seus fornecedores propriedades envolvidas com ilícitos. Em 2008, por iniciativa da então ministra do Meio Ambiente Marina Silva, o Conselho Monetário Nacional (CMN) editou uma resolução que passou a exigir documentação comprovando a regularidade ambiental e fundiária dos candidatos a empréstimos no bioma amazônico.
Gabriel Strautman considera que, pela falta de transparência, é impossível saber se o BNDES está de fato aplicando sua política ambiental e para quais setores e iniciativas ela estaria valendo. A auditoria do TCU afirma que, por serem muito recentes, ainda não é possível aferir se as diretrizes do banco para a pecuária já estão surtindo efeito.
O site do BNDES menciona ainda critérios para o financiamento do setor de geração de energia, com padrões mínimos de uso de tecnologias e limites máximos de emissões de poluentes, mas a regra só vale para usinas termoelétricas. Questionada sobre a inexistência de parâmetros para hidrelétricas, a assessoria respondeu apenas que a política ambiental do banco evolui para “um maior detalhamento considerando as características específicas de cada setor” e que “de forma crescente novos setores têm sido incluídos nos critérios específicos”.
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