Artigo por José Goldemberg
O sistema energético brasileiro lembra, na sua operação, uma empresa de transporte que leva passageiros de um lugar para outro sem perguntar os motivos por que eles viajam nem o que vão fazer quando chegarem ao seu destino final. Todas as empresas, sejam do setor elétrico ou de petróleo, se colocam na posição de vendedoras de energia, quer sejam estatais ou privadas: são supridoras de energia e seu faturamento é tanto maior quanto mais venderem, mesmo que os usuários a desperdicem.
Sucede, contudo, que energia é um ingrediente tão essencial da civilização moderna que o poder público tem a responsabilidade de garantir que ela esteja disponível o tempo todo, suprindo o papel das empresas privadas quando elas não forem capazes de fazê-lo. É por essa razão que, quando se trata de construir usinas elétricas, perfurar poços de petróleo ou construir reatores nucleares, faz sentido perguntar como essa energia vai ser usada: é preciso olhar o problema pelo lado da demanda, isto é, dos consumidores.
Esse tipo de pergunta não era feito no passado porque energia era abundante e barata e representava uma fração pequena das despesas dos consumidores residenciais ou industriais. Mas a situação mudou a partir de 1973, com a "crise do petróleo", quando o seu custo aumentou drasticamente. Por essa razão, nos países industrializados - logo após a crise de 73 - foram introduzidas medidas para racionalizar o uso da energia, que tiveram grande sucesso. Só para dar um exemplo, o consumo de energia na Europa seria 50% maior do que é atualmente caso tais medidas não tivessem sido adotadas. Parte desses ganhos se deve à maior eficiência dos equipamentos que usam energia, como geladeiras e eletrodomésticos em geral, automóveis, aquecimento residencial e outros, além de a mudanças estruturais da sociedade, em que os serviços adquiram maior importância.
No Brasil, contudo, sucessivos governos têm a ideia fixa e atrasada de que o consumo de energia tem de crescer junto com o produto bruto nacional (PIB), ou até mais rapidamente do que este, o que simplesmente não é verdade, dependendo do momento histórico. Quando um país está despertando para a industrialização, as obras de infraestrutura consomem muita energia, sendo natural que seu consumo aumente junto com o crescimento da economia (ou até mais que ele). Essa era a situação no Brasil há 50 anos. Hoje já existe um parque industrial sofisticado no País, e com o desenvolvimento da informática pode-se fazer muito mais com menos energia. Essa é a razão por que é possível fazer o PIB crescer mais rapidamente do que o consumo de energia, como está ocorrendo em muitos países. Não se trata de austeridade ou de se privar da utilização de energia, mas de racionalizar o seu uso.
No caso da eletricidade, em particular, São Paulo consome cerca de um terço de toda a eletricidade produzida no Brasil, e cerca de metade dela é "importada" de Itaipu e do resto do sistema interligado. É para suprir essa demanda que se justifica, em boa parte, a construção de grandes usinas hidrelétricas na Amazônia, como Belo Monte e outras, que vão contribuir para criar problemas socioambientais difíceis de equacionar. Portanto, São Paulo, com seu enorme consumo e seu poder de compra, pode influir no que se pretende fazer em termos de energia elétrica no restante do País.
Só para dar um exemplo, o Estado de São Paulo, no governo Alckmin, há seis anos, percebeu que uma maneira de reduzir o desmatamento na Amazônia era exigir que a madeira dessa região que entrasse em território paulista não se originasse de desmatamentos ilegais. Esse procedimento teve algum sucesso e outros do mesmo tipo foram introduzidos para evitar o consumo de carne de rebanhos "ilegais" que estivessem contribuindo para a destruição da floresta amazônica. O acordo assinado pelos grandes frigoríficos com o Greenpeace teve o mesmo objetivo.
Usando a mesma lógica, reduzir a "importação" de energia hidrelétrica gerada na Amazônia em São Paulo contribuiria para diminuir a necessidade de grandes obras naquela região. A redução da "importação" poderia ser feita de duas maneiras:
Aumentando a geração de eletricidade nas usinas de cana-de-açúcar do Estado, queimando o bagaço em caldeiras mais eficientes - o BNDES tem linhas especiais de financiamento para encorajar essas práticas; isso está ocorrendo nas usinas novas, mas há ainda muito a fazer nas usinas antigas que usam caldeiras de baixa pressão;
e lançando um grande programa de racionalização do uso de energia elétrica no Estado, sobretudo nos setores eletrointensivos, o que seria coerente com a estratégia de modernização da indústria paulista resultante da Lei de Mudanças Climáticas aprovada no governo José Serra, que tem por objetivo reduzir as emissões de carbono até 2020.
Os instrumentos para tal já existem na área federal, porque o Congresso Nacional, em 2001, por iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso, aprovou uma lei - que só foi regulamentada já no final do atual governo, que, portanto, desperdiçou uma grande oportunidade - autorizando o Executivo a atuar na demanda de energia, proibindo a comercialização de produtos que não tenham um mínimo de eficiência energética. Esse método de atuar na demanda teve enorme sucesso na Califórnia, onde o consumo de eletricidade per capita é quase 50% menor do que nos Estados Unidos como um todo. No Brasil, até agora, apenas geladeiras de baixa eficiência foram proibidas, mas um grande número de outras ações no mesmo sentido poderiam ser tomadas sem necessidade de mais legislação.
É o caso de pensar seriamente nessas opções no Estado de São Paulo e esclarecer o governo federal sobre a necessidade de reexaminar qual a necessidade real de obras de grande porte que poderão ter sérias consequências ambientais.
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)
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