quarta-feira, 12 de novembro de 2008

OESP - Olho no olho dos anjos da guarda da Amazônia

Por Marcos Sá Corrêa*
Artigo

Para mostrar o que a Amazônia está perdendo, o fotógrafo Pedro Martinelli não precisa da fauna ou da flora. Ele não trabalha com índices de desmatamento ou listas de espécies em extinção. Seu assunto é gente. E gente, para suas Leicas, é o caboclo amazônico.

Desde que, há uma década e meia, Martinelli trocou o emprego em São Paulo por um barco na Amazônia, o rio e a selva nunca ocuparam o primeiro plano de suas fotografias. São indispensáveis só como cenário. O chato é que o Brasil está estragando seu pano de fundo depressa.

Martinelli o conhece de perto há 35 anos. Na década de 1970 ele cobriu os mais de 30 meses da expedição que tirou os krenhakarore da idade da pedra para a era das epidemias fatais, para abrir caminho à Rodovia Cuiabá-Santarém. De lá para cá, a cada surto desenvolvimentista na Amazônia, Martinelli estava no front, de máquina fotográfica em punho.

Viu a floresta ser povoada rapidamente com chaminés fumegantes, tratores de esteira e meninas ribeirinhas que se vestem como vedetes decaídas da televisão. Tudo o que era inimitável ficou mais escasso e difícil. Nem por isso deixou de flagrar a destruição da Amazônia. Ao contrário, tornou-a mais eloqüente, fotografando-a em escala humana. E os estragos estão mais nítidos do que nunca em Mata X Gente, o terceiro livro de fotografias que, além de ilustrar, ele mesmo edita, publica e distribui.

Martinelli nunca faz pose de ambientalista. É com gente que ele vem medindo em seus livros a degradação vertiginosa da Amazônia. E o sintoma definitivo ele encontra na cara dos caboclos que, nas páginas, fitam a posteridade, o leitor ou o fotógrafo com uma expressão que ultrapassa a altivez, porque dispensa o menor travo de vaidade ou soberba. O olhar dos caboclos de Martinelli é o mesmo que Marcel Gautherot fotografava há meio século nas jangadas do cais de Salvador.

Na Bahia, como na Amazônia, esse olhar perdeu até os acessórios, como o chapéu de palha e a roupa branca de algodão grosseiro. De boné e bermuda, todo mundo parece que veio de um morro no Rio de Janeiro. Os caboclos de Martinelli são troféus de um Brasil quase atual, mas já perdido.

Eles nos encaram do fundo das páginas com a confiança de quem cercou sua identidade com uma sólida barreira territorial. E a barreira está ruindo. Parecem à vontade diante do fotógrafo peso pesado, louro, à primeira vista mais exótico num igarapé da Amazônia do que um viking nas praias da Normandia.

São “olhares de anjo da guarda” que, em Mata X Gente, falam da Amazônia que vai ficando para trás. Com eles, Martinelli crava um argumento inédito no debate da conservação com o desenvolvimento. Se é em favor desses brasileiros que estamos acabando com a floresta, está na hora de lhes dizer isso olho no olho.

* É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

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