sábado, 18 de setembro de 2010

Livre terra de livres irmãos

Por ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

Desconfio que passadas as eleições a política vai murchar como um balão apagado. Até lá vamos roendo os ossos do ofício que é estar perto da notícia, acreditando que, aconteça o que acontecer, o Brasil em outubro não será diferente do que é hoje.


Transformações são o trabalho de décadas de História. O país vem mudando, para melhor, há quinze anos. As eleições se passarão sem sobressaltos, como convém às democracias. Depois, uns estarão felizes, outros não, mas o Brasil não terá deixado de ser essa nação extraordinária, feita de vários países que cantam na mesma língua o mesmo hino, vitral de culturas, ferida por desigualdades escandalosas, recheada de analfabetos e um punhado de grandes cientistas e artistas, múltiplas crenças mas sempre a fé, mesmo no ateísmo, empresas hipermodernas e esgoto a céu aberto, campeão em células-tronco e em filas nos hospitais.

Dessa matéria múltipla, informe e, por vezes, intragável somos feitos. Se tivéssemos colecionado todos os bonés que Lula usou em oito anos entenderíamos melhor o seu sucesso de animador desse grande auditório. Dilma vai suar se for ela a comandar a massa.

O Brasil tem muito a dizer em um mundo que oscila entre a violência da intolerância e a mediocridade. Nossa democracia é tosca, mas se decide entre os que desafiaram a ditadura. Do fundo da floresta amazônica saiu uma mulher, fragílima e fortíssima, com uma visão planetária. Convenhamos, medíocres não somos.

Repetitiva, banal e vazia é a campanha eleitoral que sofre a maldição do espetáculo, com maus atores disputando o papel de herói ou heroína de uma novela sem poder de convicção que invade nossas casas, provocando um riso amargo.

O grande ausente nessa campanha é o futuro.

O passado nos promete que amanhã o Brasil será São Paulo ontem ou o filme de propaganda de uma empresa de petróleo, relembrando os feitos - não os malfeitos - do governo que termina.

Que tipo de sociedade os candidatos propõem ao Brasil? Ninguém sabe.

A campanha tem sido uma arena em que se disputa poder e não projetos de futuro. Contrapõe políticos, partidos e governos e deixa de fora a sociedade que, em sua imensa complexidade, é a garantia de que o Brasil é maior que a Praça dos Três Poderes.

Os marqueteiros menosprezam a sociedade.

Os personagens de aluguel, supostamente a representá-la, são caricatos em sua simplicidade ou bonomia mal ensaiada, em seus arranques de gratidão aos governantes. Na vida real somos menos tolos que esses falsos pobres.

Nesse não debate é aflitiva a hegemonia do econômico e da politicagem, o Brasil como Estado e não como cultura. Ora, é nela que germina o que temos de melhor.

O país continuará sua história celebrando, com razão, a estabilidade da moeda e a redução da pobreza no marco da democracia, abrindo espaço para a criatividade de um povo que há anos se prova em engenhosas estratégias de sobrevivência, nas manifestações plurais de uma arte colorida e nos afetos em que se misturam todas as gamas de pele.

Há quem faça declaração de voto. Prefiro uma declaração de amor ao país dos meus sonhos, em que espero um dia viver e que, se é utópico, atende à utopia de que falava Ernest Bloch: o possível, que não está sendo porque não fizemos o que poderia e deveria ser feito.

A civilização brasileira teria a propor ao mundo o exemplo de que a mistura de peles e as religiões que coexistem ainda é a melhor receita para a paz. Tudo isso sobre um fundo verde, essa lucidez sobre o presente que assegura o futuro e que, tão urgente, ainda é de tão poucos.

Riqueza melhor distribuída, autoestima e esperança que alimentam a alegria. O conhecimento também é riqueza, negada aos jovens. Socorro na doença e na desgraça que um dia chega a todos e a saúde no bem viver. A violência, uma exceção que escandaliza, e não o pão dormido de cada dia. O fim do medo e da impunidade. Justiça, rápida e confiável, porque sem ela a democracia é o governo do demo.

Uma cultura cidadã, a responsabilidade de cada um se autogovernar e se exprimir ética e esteticamente. Betânia declamando Guimarães Rosa. E Regina Casé abrindo o pano da periferia que ferve.

Livre terra de livres irmãos. Onde o presidente é um ator - importantíssimo, é certo - mas um entre outros. Pode muito, mas não pode tudo. Quem sentir a tentação autoritária - e o risco existe - lembre-se que, mesmo fantasiada de interesse coletivo, encontrará ojeriza e resistência. A unanimidade é burra, já foi dito. De olhos e ouvidos abertos, estão todos aqueles que só respiram em liberdade.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora.

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