Raquel Cozer
Ingrid Betancourt lança livro em que revê os seis anos e meio passados sob o jugo das Farc na Floresta Amazônica
Resgatada há pouco mais de dois anos das mãos das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), a franco-colombiana Ingrid Betancourt passou três quartos desse tempo de liberdade revivendo em detalhes o que aconteceu. Ainda migrava entre acampamentos da guerrilha na floresta Amazônica - onde ficou como refém por seis anos e meio - quando decidiu que colocaria no papel seu testemunho. Mas levar isso a cabo foi menos simples do que poderia pensar.
O resultado é Não Há Silêncio Que Não Termine, memórias de mais de 500 páginas em que descreve com riqueza de detalhes o momento da captura, as tentativas de fuga, a difícil convivência com guerrilheiros e outros prisioneiros - em especial, com sua ex-assistente Clara Rojas - em condições sub-humanas. A ex-candidata à presidência da Colômbia hoje vive entre Paris e Nova York, onde moram os filhos, e comanda uma fundação em defesa da liberdade e da justiça social. Veja trechos da conversa que teve por telefone com o Estado.
Seu livro é muito detalhado nas descrições de situações e diálogos. Escrevê-lo era algo que já passava pela sua cabeça enquanto vivia aquelas situações?
Na floresta, eu sabia que uma coisa que gostaria de fazer após a libertação seria testemunhar o que vivi. Essa ideia me ajudava a ir em frente. Mas, até em fevereiro de 2009, estava apenas vivendo a emoção e a felicidade de estar livre, aproveitando a relação com minha família. Quando senti que voltava a uma rotina normal, sentei em frente a uma escrivaninha para começar. Então fiz uma lista de coisas sobre as quais gostaria de falar. Momentos dos quais me lembrava e não queria esquecer. O fato é que não é um livro cronológico, você começa a ler de uma das minhas tentativas de fuga até minha libertação. E também não quis colocar tudo lá, quis escrever sobre vivências que representaram algo na transformação que experimentei ao longo de tudo aquilo. Houve situações sobre as quais preferi não escrever.
Que tipo de situações?
Uma vez que me lembrava de algo, ponderava se contar aquilo seria decente, no sentido de que há situações que não são bonitas para se trazer à tona, porque não trazem nada que possa enriquecer alguém. Acredito que às vezes, mesmo na dor, há coisas bonitas. E era isso o que queria dividir. Não queria abordar coisas horríveis que não tiveram sentido e que só magoariam as pessoas ao meu redor. Entende? Não queria registrar histórias apenas sujas, que foram pura loucura ou crueldade.
Em vários trechos do livro, você demonstra até carinho por alguns dos guerrilheiros.
Sim. Acho que esse é um livro de amor no sentido fraterno, que é aquele que não espera resposta. É sobre como você pode amar nas situações mais extremas. Vivi isso tudo com a sorte de ter por perto alguns seres humanos incríveis, que me trouxeram nova dimensão para palavras como solidariedade, dignidade, compaixão.
E é curioso porque, ao mesmo tempo, você escreve sobre como odiou aquelas pessoas.
Quando vive uma situação extrema, você tem sentimentos extremos. Então se dá conta de que, por que são extremos, não significa que não possam mudar. Uma das coisas que aprendi foi que você pode odiar alguém por quem tem bons sentimentos. É claro que odiei meus sequestradores, porque eram horríveis, mas, hoje, quando vejo o que aconteceu, sinto compaixão. Entendo o que é a condição humana e como somos levados por coisas que nos controlam, por pressão do grupo, ordens ou pelo fato de odiar outra pessoa não por achá-la horrível, mas porque você precisa disso para se sentir melhor.
Você chegou a se odiar ou ter vergonha de suas atitudes?
Não. (Pausa) Uma coisa que sempre esteve na minha mente, ainda no cativeiro, era que não queria olhar para trás e ter vergonha do que vivi ou fiz. Queria ser capaz de sair da floresta, me olhar no espelho e estar em paz. É claro que tive reações que não foram as melhores. Mas, por toda a jornada que fiz, posso estar em paz comigo.
Você critica atitudes de Clara Rojas e dos prisioneiros americanos... Que, aliás, também criticam as suas nos livros deles.
Sabe o que penso? Penso que somos pessoas feridas. Fomos forçados a viver num espaço restrito, recebendo todo tipo de mensagem para nos afastar, porque as Farc sabiam que, unidos, podíamos tentar fugir ou nos rebelar. Eles vêm fazendo isso há anos, sequestraram milhares de pessoas, sabem como agir. Meu livro é sobre o que vi, o que vivi, como me senti, não é sobre o bem e o mal. Todos éramos bons e maus. Tenho respeito por meus companheiros. Não quero sentir que tenha apontado o dedo a alguém, porque isso eu tentei evitar. Escrevi o que escrevi porque penso que cada um deveria refletir sobre como se comportaria se fosse obrigado a viver o que vivemos. É fácil dizer "ah, que horrível" quando você está à sua mesa, comendo o que quer, falando com quem quer e indo para a cama na hora em que quer. E então você vai para a internet dizer todo tipo de coisa estúpida.
Você descreve no livro a origem camponesa das Farc, nos anos 60, e como eram diferentes do que são hoje. É possível apontar um culpado nesse caso?
É simples. As Farc são culpadas do sequestro. Houve todo tipo de especulação sobre quem foi responsável pelo meu sequestro. Os responsáveis foram as Farc, ponto. Agora, como organização, eles fizeram muito mal para a Colômbia. Não responderam de maneira apropriada aos problemas que temos, tornaram-se piores que a sociedade, mais corruptos, mais violentos, mais injustos. Eles ofereceram uma maneira melhor de viver, uma solução para as injustiças sociais. Mas o que vi na floresta foi o contrário. Há uma hierarquia na qual quem está no topo tem uma vida melhor que a de quem está na base. Tem privilégios, dinheiro e abusa do poder.
Como você se sente em relação às reações na Colômbia ao seu pedido de indenização do Estado (Ingrid recuou do pedido de indenização de R$ 14 milhões após receber duras críticas)?
Eu me sinto muito magoada. É uma ferida profunda. Qualquer vítima de terrorismo tem direito a compensação, não só para ajudar a fechar as feridas como para mostrar o que aconteceu. Como vítimas, temos de ter esse suporte. Se o Estado não pode nos proteger contra o terrorismo, deveria nos ajudar depois. Foi manipulação política. O governo disse que, ao pedir indenização, eu atacava os soldados que me libertaram. Não sei como fizeram essa relação e como as pessoas engoliram isso. Eles mostraram em números quantos salários poderiam ser pagos, dizendo "olha como ela é horrível". Eu nunca teria aceito viver o que vivi por aquele dinheiro, nem pelo dobro. Nada vai compensar os seis anos e meio longe dos filhos, o momento em que não pude estar com meu pai quando ele morreu, os anos que acabaram com meu casamento, o sofrimento da minha mãe. Nada vai me compensar isso.
OUTROS REFÉNS CONTARAM SUAS VERSÕES
Clara Rojas, assistente de Betancourt na campanha das eleições de 2002 na Colômbia - e que foi sequestrada com a então candidata, tornando-se seu desafeto no cativeiro -, relatou as vivências na selva em Cautiva (2009). No início deste ano, saiu Out of Captivity, de três ex-reféns americanos, que descreveram a franco-colombiana como egoísta.
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