Especial Cerrado
Artigo
Por Victor Leonardi, escritor e historiador
Li os relatórios feitos pelos membros da Expedição Cruls, no final do século 19, nos quais são descritos os trabalhos de definição do quadrilátero do futuro Distrito Federal. Cruls era diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro. Ele e sua equipe foram de trem até Araguari, no Triângulo Mineiro, e de lá seguiram a cavalo até as velhas cidades de Meia Ponte, Goiás e Santa Luzia.
Algumas fazendas já existiam em terras que hoje pertencem a Brasília, porém a estrada de ferro só chegaria a Anápolis em 1935. As viagens eram difíceis, mas prazerosas. Cruls, que era belga, gostou muito da vida no Cerrado. O mesmo pode ser dito do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que atravessou o Cerrado goiano, a cavalo, em 1819. Embora relate asperezas e agruras do caminho, Saint-Hilaire se refere ao Cerrado de forma amável e saudosa em seu livro Viagem à Província de Goiás. Ele havia visitado índios caiapó, nas imediações de Vila Boa, e acabara de passar por Caldas Novas e Caldas Velhas quando escreveu, em pleno sertão: "A vida que eu levo, apesar das fadigas e privações, agrada-me cada vez mais, e é com certo temor que penso no meu regresso à França."
Essa viagem do naturalista francês foi feita na época das vacas magras, quando a mineração já estava em franco declínio. O movimento de tropeiros e viajantes havia caído muito, com o ouro sendo substituído pela pecuária, pela agricultura de subsistência, pela produção de fumo de rolo e de aguardente. A cidade de Meia Ponte, atual Pirenópolis, foi uma das poucas exceções, graças ao comércio. Essa relativa penúria material contrasta com as descrições feitas por viajantes do século anterior. Tropeiros e autoridades civis e militares viajavam de Salvador, capital do Brasil Colônia, para Goiás por uma estrada que ia até Mato Grosso, aberta na primeira metade do século 18. Por ela passou o capitão-general de Goiás, em 1733, D. José de Almeida Vasconcelos, com sua comitiva. Foram recebidos com festa em várias vilas, "e cantaram-lhe óperas italianas até nas mais obscuras bocas do sertão", segundo o historiador Paulo Bertran.
Algo semelhante ocorria em Vila Bela da Santíssima Trindade, capital mato-grossense fundada em 1752, às margens do Rio Guaporé, por D. Rolim de Moura, Conde de Azambuja, primo do rei de Portugal, homem que acabaria se tornando anos mais tarde, no Rio de Janeiro, o 10º vice-rei do Brasil. Rolim de Moura foi governador de Mato Grosso por mais de 10 anos. Segundo o historiador Carlos Francisco Moura, apesar da pobreza em que vivia boa parte da população, algumas tradições culturais urbanas tinham sido mantidas em Vila Bela, como a encenação frequente de peças teatrais de autores europeus. Segundo Moura, em texto intitulado O teatro em Mato Grosso no século 18, algumas comédias espanholas foram encenadas e, até mesmo, a tragédia Zaíra, de Voltaire!
As tradições populares - romarias, mutirões, cavalhadas, moçambiques, congadas, catiras, festas da lua cheia, festas de São Benedito, festas do Divino Espírito Santo - também merecem atenção, pois constituem formas não eruditas e belas da cultura das zonas rurais da região. O Cerrado distante foi palco de vários conflitos interétnicos, que causaram sérios problemas para os povos indígenas, mas foi o local onde nasceu uma boa parte da cultura brasileira em suas diferentes expressões. O isolamento não gerou apenas hábitos despóticos, típicos do coronelismo, mas também hábitos generosos, de hospitalidade, no remoto interior do Brasil.
As culturas regionais e locais passaram por rápidas mudanças nos últimos anos e a modernidade tem hoje em Brasília expressões arrojadas não só na arquitetura como na música, na pintura, no teatro, na fotografia, na poesia e no cinema. Não vejo contradição na convivência "cerratense" entre antigo e moderno, erudito e popular. Espero que as raízes culturais ancestrais sejam preservadas, por isso uma boa política de desenvolvimento sustentável, e de defesa do Cerrado, deve vir acompanhada de forte apoio às tradições populares e à cultura dos habitantes do grande sertão brasileiro.
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