Por Washington Novaes
Em artigos anteriores, comentou-se neste espaço a gravidade do quadro no País em várias áreas - institucional, urbana, fiscal, do clima (e da energia), ambiental, entre várias outras. É preciso acrescentar a área da renda, do trabalho (ou da falta dele) e das desigualdades sociais - apesar de alguns progressos -, assim como a da violência, que tem ligações estreitas com aquela.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a desigualdade social no País diminuiu 4,1% (índice Gini) no primeiro semestre deste ano (5/8). E 316 mil pessoas saíram da "condição de pobreza" entre agosto do ano passado e março deste ano nas seis maiores regiões metropolitanas. Ao que parece, entretanto, a redução de empregos e de rendimentos nos níveis mais altos teve forte influência nesse resultado (a taxa de desemprego aumentou 18,5% nas faixas de menor rendimento e 24,8% nas de maior poder aquisitivo), assim como a ampliação do Bolsa-Família. Além disso, o rendimento médio dos trabalhadores caiu cerca de 3% no primeiro semestre de 2009 (Ipea, 12/8), principalmente entre pessoas com ensino médio completo (57% da população ocupada).
De qualquer forma, a participação dos salários no total da renda nacional (menos de 40%) continua muito longe dos patamares da década de 60 (cerca de 60%) ou 80 (50%). Também é preciso considerar que, segundo aquele órgão, a taxa de pobreza continua a incluir 31,1% da população (14,5 milhões de pessoas só naquelas seis regiões), ainda que tenha baixado 6,1% em dois anos. É escandaloso, ainda mais porque o Brasil tem uma das maiores taxas de concentração da renda no mundo, segundo estudos da ONU.
Se se traduzir essa taxa da pobreza para o País todo, vai-se chegar a mais de 60 milhões de pessoas, embora seja certo que parte delas esteja no âmbito do Bolsa-Família, que já tem 53 milhões de beneficiários. Afirma o presidente do Ipea (Estado, 20/6) que hoje 35% da população está protegida por "garantias de renda que não dependem mais do mercado de trabalho", e sim da Previdência Social e do Bolsa-Família. São pessoas que se beneficiam até de aumentos de renda superiores ao do salário mínimo.
Como a taxa de desemprego nas seis regiões metropolitanas continua pouco abaixo de 9% (entre as pessoas que procuram trabalho), trabalhadores com mais de 55 anos de idade continuam a ser os mais atingidos pelo desemprego. Mas a eliminação de postos de trabalho assalariado, formais e informais, é mais intensa na faixa até 39 anos de idade. E a situação é gravíssima para jovens de 18 a 24 anos, dos quais 18,9% não encontram trabalho (a média entre homens de todas as idades é de 7,3% e entre mulheres, de 10,7%). Isso certamente tem reflexos muito fortes na área da violência, como mostrou recentemente o Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Estado, 22/7): até 2012 nada menos que 33,4 mil jovens entre 17 e 19 anos serão assassinados nas 267 cidades com mais de 100 mil habitantes. Serão 13 por dia. E quase metade das mortes de jovens no País é por homicídios.
Também por outros ângulos a situação não é rósea: 9,1 milhões de mulheres trabalham como empregadas domésticas e seus salários são os mais baixos entre todas as categorias; no Nordeste, diz a Fundação Getúlio Vargas (Estado, 20/7) o aumento da renda não se tem traduzido em melhoria da qualidade de vida, mal basta para sobreviver; mesmo a progressão do salário mínimo (aumento de 52,3% em seis anos) ainda está longe do dobro que se anunciou como meta; e em apenas um ano tivemos 653 mil acidentes no trabalho (27,5% mais que no ano anterior), dos quais resultaram 2.708 mortes e 8.504 casos de invalidez permanente.
Todo esse quadro levou, em maio, o Comitê de Direitos Econômicos e Sociais da ONU a reunir uma série de recomendações ao Brasil:
Esforço maior para reduzir as desigualdades sociais;
ampliação do Bolsa-Família (já concretizada);
iniciativas para eliminar o "trabalho escravo" ou em más condições em vários setores, principalmente no da cana-de-açúcar;
impedir o trabalho infantil generalizado;
iniciativas para eliminar a violência e a impunidade;
melhorar as condições precárias de vida de 6 milhões de pessoas (que incluem os sem-teto) nas áreas urbanas;
apressar a implantação da reforma agrária;
incluir índios no Bolsa-Família;
iniciativas para impedir que 43% das crianças de até 14 anos abandonem a escola.
A conclusão/síntese da comissão é de que houve avanços no combate à pobreza no País. Mas a injustiça social "prevalece" - e um dos exemplos mais marcantes é a menor expectativa de vida de negros, comparados com brancos. O risco de assassinato entre adolescentes negros é 2,6 vezes maior que entre adolescentes brancos. E o risco entre homens 11,9 vezes maior que entre mulheres (Agência Brasil, 23/7). Outros ângulos poderiam ser destacados, como a inaceitável taxa de analfabetismo no País (10%, ou quase 20 milhões de pessoas).
Não estranha, assim, que já em abril o próprio Ipea tenha dito que "a qualidade do desenvolvimento piorou", com importante colaboração da crise econômica quando se avalia a qualidade do crescimento, da inserção externa e do bem-estar. Está na hora, portanto, de rever nossos fundamentos. Não apenas para criticar governos. Mas para tentar caminhar em direções mais consistentes, que trabalhem com as grandes questões do nosso tempo, que são a insustentabilidade dos atuais padrões de produção e consumo no mundo, ao lado das mudanças climáticas. Sobre estas disse na semana passada o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, na reunião da Convenção do Clima em Bonn, que temos menos de uma década para encaminhar soluções, a fim de evitar uma "catástrofe global".
É muito grave.
Não dá para fazer de conta que não se ouviu.
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