No final dos anos 1990, já despontando como grande produtor rural do país, o Estado do Mato Grosso começou a investir em programas de regularização de seus proprietários rurais perante as regras ambientais. O principal vetor desta política foi o programa intitulado Sistema de Licenciamento Ambiental de Propriedade Rural (SLAPR), que trazia as ações de desmate de suas propriedades cadastradas em operações legalizadas.
Por Flávio Bonanome
Quase 10 anos depois de sua implantação, vê-se que o sistema, criado para supostamente trazer um bem-estar ambiental, foi usado somente como forma de legitimação da degradação do Estado, sem efetivas medidas para a contenção do modelo de substituição da floresta.
Buscando compreender quais foram os erros e os méritos do sistema e como ele poderia se transformar em uma ferramenta poderosa de gestão, a pesquisadora Andréa Aguiar Azevedo realizou a tese de doutorado "Legitimação da Sustentabilidade". No tratado, Andréa destrincha todo o processo histórico e estatístico do programa.
Em entrevista exclusiva para o site Amazônia.org.br a pesquisadora comenta os resultados de sua pesquisa, os problemas de governança que o Mato Grosso enfrenta e a possibilidade de instaurar políticas ambientais em um Estado tão arraigado com as questões rurais. Leia abaixo na íntegra.
Amazônia.org.br - Atualmente, os mecanismos de legalização do Mato Grosso são mecanismos que prezam o meio ambiente ou são catalisadores da degradação?
Andrea Azevedo - Eu não poderia dizer que são catalisadores de degradação porque não existe, por exemplo, só o SLAPR. Eu acho que o Mato Grosso, por ser o primeiro Estado da Amazônia legal que cria um sistema como o SLAPR, acaba se tornando bastante suscetível a falhas.
De qualquer forma, eu não diria que as políticas são um modelo de degradação. Nós temos que entender quais são os objetivos da política florestal no Estado. Quando foi implementado o SLAPR no final da década de 1990, a discussão era de legitimar a produção do Estado. O Estado estava produzindo muito e se consolidando como produtor de grãos, e havia uma crítica muito grande em cima do Mato Grosso, que sempre teve altos índices de desmatamento ilegal. No inicio a idéia é que não houvesse ilegalidade, ou seja, que todo desmatamento estivesse no aval do Estado. Então quando a gente observa no panorama geral, há mais desmatamento nas propriedades cadastradas no SLAPR do que as que estão fora do sistema. O programa não inibiu o desmate, mas o objetivo não era inibir.
O que chama atenção atualmente no SLAPR é que ele não está mais exercendo a função inicial da legalização. Em 2002 a gente teve 71% de desmatamento acima de 200 hectares com autorização. Este valor cai para 4% em 2007. Desta forma o instrumento de legalização também foi perdido.
Podemos inferir então que a governança foi muito influenciada pela questão política. A partir de 2003, não necessariamente por conta da eleição do Blairo Maggi como governador, houve uma série de interrupções de input no sistema que fizeram que ele não mais operasse na maneira inicial. Hoje existe dentro do sistema o cadastro de 45% das propriedades produtivas. Ter quase a metade das propriedades cadastradas é algo significativo, já seria possível fazer uma gestão razoável, que não é o que acontece.
Amazônia.org.br - O SLAPR tornou-se uma forma de legalizar desmate ilegal?
Andrea - Um dado que eu achei interessante do meu trabalho, quando eu comparei desmate de reserva legal dentro do SLAPR e fora em área de floresta, descobri que há um desmate muito maior fora do sistema. Uma das hipóteses para isso é que as pessoas não aceitam os 80% de reserva legal. Já é sabido que este valor não tem legitimidade. Desta forma, os produtores desmatam antes de entrar no sistema, aderem ao SLAPR e então legalizam a situação. Hoje uma das formas de legalizar a reserva legal é compensando fora da área de sua propriedade, em uma unidade de conservação. Essa forma deixa muito mais barato a compensação ambiental.
Então o proprietário que não concorda com os 80% de reserva legal desmata ilegalmente, adere ao SLAPR para legalizar sua situação por meio de uma compensação fora da propriedade, barateando o processo.
Amazônia.org.br - Este mecanismo de compensação pode ser considerado uma falha do sistema?
Andrea - Este é um assunto muito controverso. De uma perspectiva mais conservacionista, ele não cumpre com a função dele, pois as unidades de conservação já existem e a reserva legal é outro tipo de categoria de área protegida. Se você está compensando seu desmate em outro lugar, que já é uma área protegida, a reserva legal não tem função real.
O olhar do governo sobre isso, e de algumas ONGs, é que primeiro seria muito caro fazer o reflorestamento na própria área legal do proprietário e o Estado iria perder área de produção. Dessa forma existe uma ajuda do governo para legalizar a questão fundiária dentro das áreas de conservação. Além disso, existem municípios que possuem cerca de 96% de área desmatada dentro da floresta, então é uma área com tanta ocupação humana que se torna inviável fazer o reflorestamento.
O que falta no sistema em termos de gestão hoje é uma espécie de zoneamento, que não é o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE), mas sim um planejamento do SLAPR para as futuras entradas, verificando locais aonde poderia ocorrer esta compensação e de onde não. Deveria haver um desenho de corredores de biodiversidade em lugares onde há uma falta maior de vegetação e, para suprir esta falta de ligação entre os biomas, o proprietário compensaria parte de seus passivos dentro da propriedade um pouco em áreas estratégicas para corredores. O instrumento serviria tanto para monitorar essa redução como para conservação da biodiversidade.
Só que isso não existe hoje. Se o produtor quiser compensar toda a reserva fora de sua propriedade, ele pode. O governo não usa o instrumento para fazer o planejamento da paisagem e isso é uma das subutilizações mais graves do sistema. Principalmente porque a existência desse planejamento foi uma das justificativas para conseguir fundos para a existência do SLAPR, e isso nunca foi feito dentro do sistema. Vemos agora que foi uma justificativa unicamente retórica.
Amazônia.org.br - Com a existência destes desenhos e planejamentos de paisagem, o SLAPR poderia se tornar um sistema que inibe o desmate?
Andrea - Não, seria só uma melhora na questão da conservação da biodiversidade. O que deveria ser feito para inibir desmatamento é cadastrar mais propriedades no sistema. O produtor precisa que o sistema seja atraente, na medida em que se ofereçam algumas vantagens econômicas.
O que mais está falhando para este fim hoje são a fiscalização e a responsabilização. A responsabilização está muito emperrada. Não estão dando multa para quem está no SLAPR para não espantar quem está fora e quer entrar. No caso da fiscalização o instrumento seria reforçado se você tivesse um sistema de monitoramento mais eficaz com imagens mais freqüentes.
Para reduzir desmatamento não há alternativa que não uma fiscalização mais próxima do ato e uma responsabilização melhor. Praticamente 5% do que é cobrado pelas multas ambientais hoje no Estado é recebido. Afinal, o SLAPR é um instrumento de comando e controle, maquiado com uma tecnologia que o faz ficar melhor. As pessoas têm dificuldades de entrar no sistema porque sabem que serão monitoradas. Então entra quem está com a situação legalizada ou quem precisa de algum financiamento.
Amazônia.org.br - O SLAPR pode se transformar em um sistema melhor para a área ambiental?
Andrea - Eu acredito que sim, só que o SLAPR não é nenhuma panacéia, não é como o banco mundial tenta frisar: não é implementando o SLAPR na Amazônia legal que vamos reduzir o desmate, pelo contrário. Mas ele é um instrumento poderoso para a gestão, que ajuda muito, desde que a gestão seja séria e comprometida com a redução do desmate.
Mas há uma série de problemas de sustentabilidade institucional dentro da Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sema), como por exemplo troca de gestores com muita freqüência. De 2003 a 2007 foram sete gestores do projeto. Ainda há uma interferência política muito grande neste caso. Se você não tem ali um controle grande da sociedade civil, é muito difícil manter o sistema funcionando, pois a transparência da Sema ainda é muito precária. A ingerência política fica mais fácil.
É preciso tirar estes espaços de interferência política e dar input para melhorar o sistema e desfazer a ideia de que isso vai resolver a questão do desmate. Isto é uma das ferramentas, que deve ser melhorada e é preciso estar aliado a um mecanismo como de Redução de Emissão por Desmatamento e Degradação (REDD), por exemplo.
Amazônia.org.br - Em um Estado com presença ruralista tão acentuada, existe estrutura democrática para legitimar novas práticas ambientais?
Andrea - Existe no Mato Grosso um conflito muito grande: há um movimento ruralista que tem ficado muito forte de uns cinco anos para cá. Eles começaram a se organizar e isso interfere nas políticas públicas. Eles, inclusive, estão fazendo este enfrentamento mesmo diante da legislação ambiental.
Um governo ligado à questão rural vai sempre tentar resolver a questão dos produtores. O Blairo Maggi sempre se coloca como representante dos produtores. É muito difícil a gente saber até que ponto há ou não um beneficiamento desta classe.
Um exemplo mais claro disso é o MT Legal, que foi implementado recentemente. O programa nada mais é do que dividir o SLAPR em duas partes. Na primeira você só precisa arrumar as áreas de proteção permanente (APP). A partir de então, quem aderir ao programa tem de um a três anos para arrumar a reserva legal. Desta forma, adiaram a questão da reserva legal porque é uma questão espinhosa: muitos produtores não concordam com os 80% de reserva legal e esperam que haja uma mudança por meio do Congresso. Além disso, é uma entrada mais facilitada para o empréstimo que é amarrado ao licenciamento ambiental, então você não precisa mexer com reserva legal para receber financiamento. Tendo o cadastro você pode pegar o dinheiro.
O MT legal pode até vir a ser um sistema bastante importante, mas ele foi bem providencial para uma série de produtores que precisavam do financiamento e não tinham licenciamento.
Talvez essa política em um Estado rural se reflita por meio de projetos com esta tendência de legitimar a produção. O MT legal não só legitima a produção, mas também a forma de ocupação do Estado, pois o produtor pode aderir ao programa e regularizar sua reserva legal em até três anos e ainda fazer total compensação em local diferente.
Não há como desvincular a imagem do Blairo Maggi com a ideia de proteção do poder produtivo, mas ele já viu que tem que fazer isso com a melhor legalidade possível, senão há o risco de interferir na comercialização da produção do Estado. Atualmente ele está muito cauteloso, mudou muito seu discurso em relação à questão ambiental. Mas há uma frouxidão institucional contrapondo este discurso. Há problemas sérios de monitoramento, fiscalização, alocação de verba para a Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sema).
O mais interessante é que os produtores não reparam neste descompasso. Entrevistei diversos ruralistas em um evento recentemente. Perguntei o que eles achavam da gestão do governador na área ambiental e todos falaram que era muito boa, mas quando perguntava sua opinião sobre a Sema, achavam que era o pior órgão público, ficando atrás somente do Ibama. Eles desassociam o órgão do governo Maggi.
Amazônia.org.br - Na sua opinião, uma legitimação do modelo mato-grossense de ocupação pode tornar-se um risco para os demais Estados da Amazônia Legal?
Andrea - O Mato Grosso tem que servir de modelo para não copiar os erros. Se vemos que há problema acontecendo no sistema do Mato Grosso, temos que tentar sanar estes problemas. Se o objetivo dos demais Estados for esta legitimação da forma de produção, com certeza pode voltar a acontecer os mesmos erros. Resta dimensionar estes objetivos e eu acredito neste redimensionamento, justamente pelas notícias que a ciência nos tem dado e pelo prognóstico que a gente tem de REDD. Com essas novidades, o Estado começa a se interessar mais em redução do desmate.
Acredito que o Mato Grosso é um modelo e um exemplo. É preciso pegar o que não deu certo e não usar o sistema para legitimar uma ocupação. É necessário mudar a forma de ocupação e também a forma de produção. Isso é uma coisa que depende de política pública de base. Enquanto não houver uma valorização econômica da floresta, não vai mudar. Ninguém desiste de desmatar, pois os habitantes colonizaram o Estado com o intuito de substituir a floresta, o pensamento é esse, estamos numa transição cultural. E nunca será só um instrumento que dará conta disso, pois o desmate é um fruto de uma história, de um contexto.
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